A única vez que falei com Paulo Cesar Saraceni cara a cara foi numa sessão especial de um de seus filmes, Natal da Portela (1988) - finalmente pronto depois de burudungas binacionais - do Brasil, via Embrafilme em decadência, que não cumpriu sua parte na coprodução Brasil-França e não compareceu com os aimorés (segundo Ivan Lessa - até hoje em Londres - era essa a moeda oficial brasileira, a quem chamava - não sei se ainda chama... - de Bananão); da França, que reteve o negativo até que chegassem os sabarás (segundo Ivan Lessa 2, a Missão, também era esse o nome do vil metal bananês). Na saída, ele me perguntou o que achei do filme. Fui sincero com o diretor: disse que, apesar do fato de que as vicissitudes de produção terem prejudicado um pouco sua finalização, eu adorei o filme, pelo retrato generoso de um dos personagens mais carismáticos da história do G.R.E.S. Portela - Natalino José do Nascimento, o Natal da Portela (1905-1975) - banqueiro de bicho, com muita honra, e portelense convicto. (Digo "com muita honra" porque Natal era um banqueiro de bicho do tempo em que "valia o que estava escrito" e que banqueiros de bicho não se envolviam tanto com atividades hídricas...)
Como é público e notório, Natal da Portela nunca foi lançado nos cinemas - antes disso, aquelle caçador de maracujás e seu dragão da maldade (muso inspirador da economista cabeça-de-planilha que hoje exerce a presidente da República...) acabaram com a Embrafilme e com as leis de proteção ao cinema brasileiro. Às vezes, a TV Brasil programa o filme em suas sessões de cinema, assim como costuma programar também O viajante (1998) e, salvo engano, os documentários Bahia de todos os sambas (1996) e Banda de Ipanema - Folia de Albino (2003).
Minha sugestão à TV Brasil: escolha os filmes, digamos, mais alegres de Saraceni, seja Banda de Ipanema - Folia de Albino, seja Bahia de todos os sambas, seja mesmo Natal da Portela. Até para seguir a tradição carioca de se fazer um gurufim (velório, na antiga gíria dos morros). Sarra, como chamavam os amigos, merece um gurufim de respeito.
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Ainda sobre Natal da Portela: é o único filme do tipo "pague um e leve dois" que eu conheço. Isso porque, além de falar de Natal, o filme também fala de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela (1901-1949). É verdade que a escolha do salgueirense Almir Guineto, cantor e compositor de responsa, parece brincadagem do Sarra. Mas não é que ele dá conta do recado?
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Filmografia de Paulo Cesar Saraceni:
1962 - Porto das Caixas (longa-metragem)
Direção - Paulo Cesar Saraceni
Roteiro - Lúcio Cardoso e Paulo Cesar SaraceniElenco - Irma Alvarez, Reginaldo Farias, Paulo Padilha, Henrique Bello, Margarida Rey, Joseph Guerreiro, Sergio Sanz
Sinopse - Uma mulher muito pobre, maltratada por um marido ignorante e bruto, resolve assassiná-lo, e para conseguir quem faça isso, utiliza seus encantos femininos.
1964 - Integração Racial (documentário)
1965 - O Desafio
Direção - Paulo Cesar SaraceniElenco - Oduvaldo Vianna Filho (Marcelo), Isabella (Ada), Joel Barcellos, Sérgio Britto, Hugo Carvana, Couto Filho, Marilu Fiorani, Renata Graça, Zé Keti, Luiz Linhares, Gianina Singulani, Maria Bethânia (A própria), Nara Leão (A própria), João do Vale (Ele mesmo), Elis Regina (A própria).
Sinopse – Por tratar do romance entre um estudante de esquerda, Marcelo (Vianinha) e a mulher de um rico industrial, Ada (Isabella) foi entendido pela censura do regime militar como apologia do amor entre as classes... Na verdade o que diretor quis foi investigar as razões do Golpe Militar de 1964 (especialmente a traição da burguesia industrial, que não se mostrou progressista) e seu impacto psicológico sobre os intelectuais.
1968 - Capitu
Direção - Paulo Cesar Saraceni
Roteiro - Paulo Cesar Saraceni, Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles, baseado no romance Dom Casmurro, de Machado de AssisElenco - Isabella, Othon Bastos, Raul Cortez, Rodolfo Arena, Nelson Dantas, Marilia Carneiro, Maria Morais, Wagner Lancetta, Patrícia Templer, Lídia Podorolska.
1970 – A casa assassinada
Direção - Paulo Cesar Saraceni
Roteiro - Paulo Cesar Saraceni, a partir de romance homônimo de Lúcio Cardoso.Elenco - Norma Bengell (Nina), Carlos Kroeber (Timóteo), Nelson Dantas, Leina Krespi, Tetê Medina, Augusto Rodrigues Lourenço, Nuno Veloso, Rubens Araújo, Joseph Guerreiro.
1973 - Amor, Carnaval e Sonhos
Direção - Paulo Cesar Saraceni.
Roteiro - Paulo Cesar Saraceni.
Elenco - Arduíno Colassanti, Leila Diniz, Hugo Carvana, Ana María Miranda, Isabel Ribeiro, Paulo Cesar Saraceni.
Sinopse – Misto de documentário e ficção que se passa no carnaval carioca. O filme marca a última aparição de Leila Diniz no cinema.
1977 - Anchieta, José do Brasil
Direção - Paulo Cesar Saraceni.
Roteiro - Paulo Cesar Saraceni e Marcos Konder Reis.Elenco - Ney Latorraca (Anchieta), Luiz Linhares, Maurício do Valle, Joel Barcellos, Hugo Carvana, Maria Gladys, Vera Barreto Leite, Paulo César Peréio, Ana Maria Magalhães, Roberto Bonfim, Dedé Veloso, Manfredo Colassanti, Carlos Kroeber, Wilson Grey, Antonio Carnera
1982 - Ao Sul do Meu Corpo
Direção - Paulo Cesar Saraceni.
Elenco - Nuno Leal Maia (Policarpo), Paulo César Peréio (Alberto), Ana Maria Nascimento e Silva (Helena), Othon Bastos (Padre Paulo), Cissa Guimarães, Jalusa Barcelos, Maria Pompeu.
Sinopse - Um jovem, Policarpo (Nuno Leal Maia) se envolve com Helena (Ana Maria Nascimento e Silva), a mulher de seu professor e orientador, Alberto (Paulo César Peréio), ao visitá-los em Campos do Jordão.
1988 - Natal da Portela
Direção - Paulo Cesar Saraceni.
Roteiro - Paulo Cesar Saraceni.Elenco - Milton Gonçalves (Natal da Portela), Almir Guineto (Paulo da Portela), Grande Otelo (Seu Napoleão), Zezé Motta (Maria Elisa), Paulo César Pereio, Ana Maria Nascimento e Silva, Zózimo Bulbul, Maurício do Valle, Maria Gladys, Jacqueline Laurence, Zezé Macedo, Tony Tornado.
1996 - Bahia de Todos os Sambas
Direção - Paulo Cesar Saraceni.
Documentário sobre um espetáculo musical ocorrido entre 23 e 31 de agosto de 1983, no Circo Massimo, nas Termas de Caracalla, em Roma. A Bahia, sede espiritual da nação cultural brasileira, baixou em Roma. Dorival Caymmi, João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nana Caymmi, Moraes Moreira, Naná Vasconcellos, Tomzé, Paulinho Boca de Cantor, Walter Queiroz, o trio elétrico de Armandinho, Dodô e Osmar e Batatinha, lenda viva do samba baiano, juntamente com cento e cinquenta músicos, ritmistas, dançarinas, capoeiristas, se apresentaram durante nove noites sucessivas para um platéia de aproximadamente cento e cinquenta mil espectadores.
1999 - O Viajante
Direção - Paulo Cesar Saraceni.
Roteiro - Paulo Cesar Saraceni, a partir do romance homônimo e inacabado de Lúcio Cardoso.Elenco - Marília Pêra (Donana), Leandra Leal (Sinhá), Jairo Mattos (Rafael), Paulo Cesar Pereio (Chico Herrera), Irma Álvarez (Rosália), Ricardo Graça Mello (Zeca), Ana Maria Nascimento e Silva (Anita), Nelson Dantas (Mestre Juca), Myriam Pérsia (Isaura), André Valli (Zé Almino), Roberto Bonfim, Priscila Camargo, Leina Krespi, Milton Nascimento, Fausto Wolff, Adele Fátima, José Loyola, Hileana Meneses, Heloisa Helena Silvano Mendes, Maria Pompeu, Esperança Motta, Marcela Moura, Geraldo Magalhães, Celia & Celma.
Sinopse – A sorte leva quatro seres humanos para a última fronteira da paixão. Lá, onde o amor torna-se quasedesumano e divino. Como se fosse um cometa, Rafael (Jairo Mattos), o viajante, aparece na festa para o santo padroeiro, em uma pequena cidade no interior de Minas Gerais. Ele é o único que traz paixão e crime, desaparecendo depois, deixando um sentimento poético no ar, que é sempre mortal para os que ficam. D. Ana de Lara, ou Donana (Marília Pera), uma orgulhosa viúva rica, e Sinhá (Leandra Leal), ainda uma criança, cuja beleza e inocência são como o Tiê-Sangue, um pássaro vermelho, são as vítimas viajantes. Há tambémMestre Juca do Vale (Nelson Dantas), um criminoso, cuja paixão o torna incrivelmente humano nesta história de amor,morte, perdão e ressurreição.
2003 - Banda de Ipanema - Folia de Albino
Direção - Paulo Cesar Saraceni.
Documentário. Albino Pinheiro e a Banda Ipanema – sua obra-prima – a partir de depoimentos de amigos e imagens do desfile da banda, em 2002.
2012 - O Gerente (ainda inédito).
Direção - Paulo Cesar Saraceni.
Roteiro - Paulo Cesar Saraceni, a partir de novela homônima de Carlos Drummond de Andrade.
Publicado originalmente em :BLOG DA REVISTA ELETRÔNICA DE CINEMA SOMBRAS ELÉTRICAS
Uma informação omitida nos necrológios da grande imprensa: Paulo César Saraceni realizou um filme que virou até motivo de pichações contra a ditadura.
ResponderExcluirMorreu Paulo César Saraceni.
Tinha 78 anos e fazia cinema desde 1959.
Em mais de meio século de atividades, dirigiu 13 filmes, nove dos quais também roteirizou.
Foi um dos fundadores do cinema novo, mas nem de longe fez obras de importância equiparável às dos dois outros parceiros de empreitada: Glauber Rocha (indiscutivelmente, o maior cineasta brasileiro de todos os tempos) e Nelson Pereira dos Santos (bem mais prolífico e realizador de clássicos como "Rio 40 Graus" e "Vidas Secas").
No entanto, Saraceni constituiu-se numa referência muito forte para minha geração, por um único motivo.
Seu "O Desafio", lançado em 1965, foi uma resposta cinematográfica à quartelada.
Enfoca os sentimentos de culpa, impotência e prostração subsequentes à vergonhosa derrota sem luta.
Foi o mal-estar que acometeu toda aquela esquerda: supunha-se a um passo do poder, iludida pelo triunfalismo inconsequente do Partido Comunista Brasileiro e seu principal dirigente (Luiz Carlos Prestes), mas acordou ouvindo marchas militares no famigerado 1º de abril de 1964.
E dá-lhe más ressacas! E dá-lhe lavagens de roupa suja! E dá-lhe lutas internas no partidão! E dá-lhe rachas!
Em 1965, a esquerda lambia as feridas e se reconfigurava, voltada para dentro de si mesma. Não reagia.
Aí, foi lançado "O Desafio". E --juro!-- o título apareceu pichado nos muros de São Paulo. Só o título, com a tinta escorrendo. Eu tinha 14 anos, via aquilo e nada entendia. Ignorava que fosse uma mensagem vinda das catabumbas: NÃO ESTAMOS MORTOS!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluircontinuaçao...
ResponderExcluirSó em 1967, dando os primeiros passos no movimento estudantil, fui assistir ao filme e compreender o motivo das pichações.
E, francamente, não gostei daquele imenso desencanto que ele flagra, o atoleiro no qual se move Marcelo, o personagem politizado (interpretado pelo Vianninha, de saudosa memória), durante quase todo o tempo.
Mas vibrei com o final, quando ele enfim levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima, decidido a voltar ao bom combate.
Isto ficou apenas sugerido, como se fazia necessário sob o tacão da censura. Depois de um porre com um repulsivo colega de trabalho, vão ao apartamento deste, cuja esposa se despe e se-lhe oferece. Antes que ele tenha qualquer reação, o marido acorda e fita ambos, em meio à sua névoa alcoolica. Marcelo empurra a mulher e vai embora, enojado. Desce uma escadaria com expressão resoluta, afaga a cabeça de um menino pobre e se distancia, marchando ao encontro do seu destino.
Tudo isto ao som do tema "É um tempo de guerra", da peça "Arena conta Zumbi".
Ou seja, da canção que Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo haviam derivado de uma poesia antológica de Bertolt Brecht, para usar o esmagamento do quilombo de Palmares como metáfora do golpe militar.
Na peça, era a lição que um guerreiro às portas da morte legava aos que viriam depois. Uma sugestão velada também, claro ("Eu sei que é preciso vencer/ Eu sei que é preciso lutar/ Eu sei que é preciso morrer/ Eu sei que é preciso matar"). Só que parecendo algo meio distante, lá pra frente, pois o momento era de derrocada.
No filme, ficou mais fácil perceber que se tratava do passo seguinte, imediato: um recado de que não só a luta tinha de ser retomada, como assumiria doravante características de guerra.
Foi profético. Houve mesmo a guerra, de consequências trágicas para a esquerda (quantos quadros insubstituíveis foram dizimados!), mas inevitável: ela só reconquistaria o respeito do povo caso se dispusesse a sangrar por seus ideais, como deixara de fazer em 1964.
Muitos dos que não pegaram em armas recriminaram nosso "vanguardismo", nosso "imediatismo pequeno-burguês". Segundo eles, só servimos para acirrar a repressão e fornecer pretextos para o endurecimento do regime.
Omitiram ter sido exatamente sua tibieza em 1964, quando deixaram de travar a luta em condições bem mais favoráveis, que nos obrigou a assumir adiante a missão quase kamikaze de lavar a honra da esquerda, virando a página da desmoralização e restituindo-lhe a credibilidade.
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