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segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Família no cinema hollywoodiano

A família é um tema recorrente no cinema, mas, especificamente nas produções de Hollywood, ela é exaltada como um dos principais valores da sociedade norte-americana e seu significado é construído por meio de um discurso que tende a naturalizar e universalizar as organizações familiares como algo dado, comum a todas às sociedades e culturas. Muitas são as referências socialmente compartilhadas do que possa ser o seu significado, o que aponta para a instituição de modelos que sugerem a existência de uma “família ideal”. A dissertação, defendida em 2012 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Minas, consiste em uma análise dos discursos construídos sobre a família em três filmes hollywoodianos produzidos e exibidos nas duas últimas décadas: Beleza americana (American beauty, 1999), Casamento grego (My big fat greek wedding, 2002) e A era do gelo 3 (Ice Age: dawn of dinossaurs, 2009). Partindo da concepção de que o cinema pode, muitas vezes, construir e reforçar essas referências por meio dos seus discursos, devido a sua capacidade de alcance e de identificação com o público, acredita-se que a análise desses filmes pode evidenciar tendências, mudanças e permanências na abordagem da família no cinema contemporâneo.

Link de acesso à dissertação:

Existe Política Além do Voto? - Corte Seco, 2006.


O período de alienação e propaganda eleitoral para a escolha de prefeitos e vereadores em todo o Brasil já começou. Programas, slogans e discursos já estão sendo bombardeados em todo o País oferecendo o "paraíso". Vote X e terá transporte gratuito. Vote Y e terá saúde. Vote W e os impostos diminuirão. Etc. Etc. Etc. O/as anarquistas recusam-se  a fornecer tais cantinelas, a cair no mero jogo de palavras, do charlatanismo político. Além de uma desonestidade, ele/as acreditam que ninguém tem a solução na manga para resolver todos os problemas da sociedade. No filme
Existe Política Além do Voto?, os autores nos chamam à reflexão crítica sobre o estrume eleitoral. A ANA
teve uma conversa rápida com um dos realizadores. Leia a seguir...


Agência de Notícias Anarquistas > Sobre o filme de vocês "Existe Política Além do Voto?", falem um pouco a respeito, do que se trata, quais os objetivos de produzi-lo...
Juliano Gonçalves da Silva < O Existe Política Além do Voto? busca responder uma dúvida existencial: será que tudo que existe é sagrado e não deve ser mudado ou revisto justamente por ter sido sempre assim ou pelo contrário tudo deve ser dito, rediscutido e desconstruído pra estruturação de uma melhor vida social coletiva? Os objetivos foram o de utilizar as novas técnicas da comunicação a favor da Anarquia, propiciando uma ferramenta de inserção social e um diálogo mais fluído com o povo, na medida em que grande parte da população brasileira é analfabeta, e por outro lado tem uma alfabetização visual (graças até a rede Bobo e seu padrão de "qualidade") e cultura oral de ampla tradição. Além disso, a produção do documentário visava conformar mais um dos diversos materiais que coletivamente produzimos nas ultimas eleições pelo Comitê Agora é Luta!, composto entre outros pelo grupo Rusga Libertária para a campanha: Não vote, Anule, Lute! Que incluía panfletos, cartazes, pixações-graffitagem,  artigos em jornais, debates, camisetas e santinhos em Cuiabá/Mato Grosso/Pindorama Ocupada.   
ANA > E o que motivou vocês a fazerem o filme?
Juliano < A visão de que arte tem uma função na sociedade e que esta pode ser inclusive a de questionar os elementos sagrados da própria sociedade. Eu particularmente estava com o lema de uma idéia na cabeça e uma câmera na mão, além do compromisso e engajamento do cinema com a transformação da sociedade. Isto junto com o a crítica a institucionalização estatal cinemanovista no Brasil e os elementos sarcásticos e anárquicos do cinema marginal cujo lema é se não pode mudar, então vamos avacalhar. Cabe ressaltar que fazer cinema no Brasil é algo muito difícil e fazer cinema sem dinheiro público e autonomamente então nem se diga. Os grupinhos que ficam atrás da grana pública são muito fechados e mancomunados com os poderes e poderosos. Ainda não temos uma filmografia anarquista constituída no Brasil, que me venha à cabeça temos os já clássicos: Os Libertários do Eduardo Escorel, O Pão Negro e Os episódios da Colônia Cecília, além de documentários sociais recentes, diferentemente do cinema mundial como já foi sistematizado no excepcional livro ainda inédito em português: http://img.anuncios.ebay.es/f8/69/f869fe0d419932b66dde20840f463778/cine-y-anarquismo-de-richard-porton_vip.jpgCine e Anarquismo – La utopia anarquista en imágenes, de Richard Porton.






ANA > Quanto tempo levou para produzir o vídeo? É um vídeo no estilo "faça você mesmo"?
Juliano < Pra fazer o filme foi jogo rápido, creio que um mês, sob a pressão da campanha que tocávamos paralelamente com diversos compas. Sim, façamos nós mesmos coletivamente, queríamos desconstruir a idéia autoral tradicional e a ilusão da montagem, diminuindo a quase zero efeitos e trucagens, por isso só usamos cortes secos. O exemplo da produção coletiva dos filiados ao Sindicato de Cinema ligado a CNT da Espanha, que recentemente circulou o Brasil (que, aliás, tá na mão pra disseminarmos), da Mostra de Cinema Anarquista produzido durante a Guerra Civil Espanhola nos guiou. E as brincadeiras que fizemos no filme como a dessincronização (a lá Tri-min-há) entre sons e imagens denunciam este engodo. Enfim, já basta de cortes molhados melodramáticos e do domínio da edição nos filmes, lembremos que existe cinema também além de Róliiude e nós fazemos o melhor cinema brasileiro do mundo.  
ANA > Alguma curiosidade ou dificuldade enfrentada ao fazê-lo?
Juliano < A desconfiança de dar depoimentos discordantes que vão contra o consenso fabricado como diria Chomsky é hoje cada vez maior, a câmera intimida mais que aproxima, o medo reina na sociedade, mas em finais de 2006 a roubalheira e a indignação era tanta que conseguimos registrá-la no filme. Isso dificulta a integração antagonista, mas é um reflexo da apatia generalizada da sociedade. Há momentos do filme em que nos deparamos com a precariedade como no microfone que tem que ser operado pelo entrevistador, ao mesmo tempo, que faz as perguntas e tem que estar quase dentro do entrevistado em função da inexistência de boom direcional, o que nos obrigou a sermos criativos pra superar a nossa precariedade e tirar o melhor proveito dela.  Mas esta é a nossa condição de latino-americano e da miséria das condições técnicas, tirar leite de pedras tem sido a nossa contribuição ao cinema mundial, vide a "estética da fome" e mais recentemente "a cosmética da miséria", assim as dificuldades desta ordem não são a exceção e sim a regra.
ANA > Como as pessoas podem conseguir uma cópia do DVD?
Juliano < Mandando uma mensagem pro agoraeluta@yahoo.com.br solicitando o filme (recebendo resposta com as instruções para pagamento) ou carta pra Caixa Postal 10062, Cep 88062-970, Yjureré Mirim/SC, com um real e noventa e nove cnetavos (coloquem dentro de um papel carbono), que cubra os custos do DVD e do envio postal. Foda-se a propriedade intelectual, é mais um roubo como diria Proudhon, talvez tenhamos problemas com a Ancine e a Programadora Brasil. (risos) Mas acreditamos que os filmes existem para serem vistos. Creio que o Existe... é um bom ponto de partida pra reunir os amigo/as, vizinho/as e conhecido/as da comunidade e discutir o que fazer frente a mais este circo eleitoral que se aproxima. Assim podemos coletivamente desmascarar esta farsa que ganham os de sempre a partir da fala do próprio Ceará no vídeo: "pra se vencer uma eleição só é preciso duas coisas, muito dinheiro e muita mentira". E finalmente tomar-nos nosso destinos em nossas mãos, como mostram outros exemplos pelo mundo. Mais recentes como a Outra Campanha e a Comuna de Oaxaca no México, o movimento popular argentino "Fora todos que não reste nem um só", a mobilização Boliviana pela água-gás ou menos recentes como as coletivizações na Espanha, os marinheiros em Kronstant , Makno e a Golai Polei, as Comunas de Paris e as barricadas do desejo do 68, e tantas outras experiências de autogestão social com democracia direta. Que evidenciam a ineficácia, ineficiência e incompletude dessa dita democracia que estamos vivendo.
ANA > Quer acrescentar mais alguma coisa?
Juliano < Gostaria de me solidarizar publicamente com você Moésio que tem sido ameaçado pelo essencial trabalho com o coletivo da ANA, por esta corja de ditas autoridades institucionais e seus asseclas na Prefeitura de Cubatão, representando um dos braços do Estado dito de "direito", que não se lembra do direito essencial de liberdade de expressão que o sustenta. Apoio Mútuo e Solidariedade Ativa serão sempre marcas libertárias, garantiram e garantem a nossa existência social por isso: Paz entre nós e guerra aos Senhores! E o melhor protesto que podemos dar a esse Estado é a nossa resposta nas urnas. Felizmente estamos voltando a um tempo em que as idéias tornam-se perigosas. Cabe ressaltar que ultimamente muitas outras esferas dos aparelhos do Estado tem se dedicado a perseguir as idéias libertárias e seus difusores. E se está incomodando é por que tem sido eficiente, conjuntamente aos esforços de outros grupos e individualidades libertárias, autônomos e de contra-informação antagonistas com seus trabalhos em diferentes campos nos têm permitido ver além... do que o capital nos quer obrigar a ver.  E lembrando Jean-Luc Godard, para mim um grande anarquista da linguagem cinematográfica, no seu Histórias do Cinema, diz que a natureza é superior a arte, que o lugar de toda criação é o homem (não nenhum partido ou classe social) e que o homem (um criador criado) tem em seu próprio coração lugares que não existem... Juntando a Durruti que diz que nós, anarquistas, trazemos um mundo novo em nossos corações e ele vem crescendo... Só posso desejar à todos/as:  Luz, Câmera... Anarquia! Avante o/as que lutam! E um grande AXÉ!


Vento traiçoeiro
Passou pela minha mente
Varreu os meus sonhos

Tony Marques

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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

ÔRÍ: À PROCURA DE UMA IMAGEM

Reflexões sobre a negritude no cinema brasileiro
Por Ceiça Ferreira
AGOSTO/2012

Se atualmente temos diversos estudos e pesquisas que discutem as representações da população negra nos meios de comunicação, no cinema e nas artes, isso é certamente uma conquista da luta de várias lideranças, estudiosos e autores negros, que se atentaram para a produção simbólica como um espaço privilegiado de reconhecimento das identidades, e também um continuum das relações de poder.

Dentre tantas figuras importantes, vale lembrar a trajetória intelectual e a história de vida da historiadora, ativista e poeta Maria Beatriz Nascimento, com sua pesquisa sobre os quilombos, suas reflexões acerca do racismo e da situação da mulher negra no Brasil, e principalmente sua colaboração no documentário Ôrí, lançado em 1989.

Beatriz Nascimento nasceu em Sergipe, em 1942, e aos sete anos migrou com a família para o Rio de Janeiro, onde se formou em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Participou de um grupo de ativistas negras/os que posteriormente formariam o Grupo de Trabalho André Rebouças, na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde continuou sua carreira acadêmica com o curso de pós-graduação no qual desenvolveu o projeto “Sistemas alternativos organizados pelos negros dos quilombos às favelas”. Também é autora de vários artigos sobre racismo, quilombos e cultura negra; além de ter promovido e participado de cursos, conferências, palestras e simpósios no Brasil e no exterior.

Em janeiro de 1995, período em que era mestranda em Comunicação Social na UFRJ, sob orientação do professor Muniz Sodré, Beatriz Nascimento foi assassinada ao defender uma amiga de seu companheiro violento, deixando uma filha (Bethânia Gomes).

Seu trabalho mais conhecido e de maior circulação é a autoria e a narração dos textos do documentário Ôrí (palavra de origem iorubá, que significa cabeça). Iniciada na década de 1970, essa produção é o encontro da pesquisa cinematográfica da socióloga e cineasta de origem judaica, Raquel Gerber, sobre a identidade negra no Brasil, com a investigação histórica de Beatriz, a cerca dos quilombos como organizações políticas e de resistência cultural negra de matriz africana (bantu), recriadas no Brasil.

O filme, relançado em formato digital no ano de 2009, registra ainda o processo de formação dos movimentos negros das décadas de 70 e 80, e articula o quilombo, a religiosidade de matriz africana e outras espacialidades, como por exemplo, a escola de samba, enquanto elementos capazes de restituir a humanidade negada na escravidão, e reconstruir as identidades negras.

Durante toda a narrativa desse documentário, dirigido por uma mulher, e ancorado no texto poético e na narração de Beatriz Nascimento, mulher, negra e nordestina, acompanhamos a constante reflexão sobre a condição de subalternidade a que é submetida a população negra na produção simbólica. Na Conferência Historiografia do Quilombo, promovida em 1977, durante a Quinzena do Negro na USP (Universidade de São Paulo), Beatriz revela sua reação com o interesse da Universidade pelo negro apenas como escravo, como se a contribuição desse grupo social fosse somente como mão-de-obra.

Mesmo após vinte anos, e embora homens e mulheres negras constituam mais da metade da população brasileira, esse pensamento ainda permanece. As representações da negritude, suas expressões religiosas, culturais e artísticas continuam associadas a estereótipos, e podem ser facilmente observadas na pele de empregados dóceis, malandros, prostitutas, favelados, macumbeiros, jagunços, “mulatas”, entre outros. Essa estratégia discursiva consolida os meios de comunicação e o cinema como principais matrizes culturais das sociedades contemporâneas, e também campos estratégicos de manutenção do poder vigente.

Em sua pesquisa sobre a representação e a participação da população negra na telenovela brasileira, no período de 1963 a 1997, o cineasta e pesquisador Joel Zito Araújo reafirma a cumplicidade desse veículo com o ideal de branqueamento dos brasileiros, que se expressa na tentativa de confirmar o mito da democracia racial e a invisibilidade de homens e mulheres negras.

Também nos textos jornalísticos, na publicidade e no cinema brasileiro as representações da negritude são marcadas por distorções e simplificações, com destaque para a folclorização e a desqualificação da cultura e religiosidade afro-brasileira, o que ratifica a oportuna afirmação do jornalista e escritor Muniz Sodré, de que a situação do negro na mídia brasileira é como a de um vampiro, que se olha no espelho, mas não se reconhece, não se vê.

Ainda sobre essa questão, o documentário Ôrí discute a dor a e angústia causadas pela perda da imagem, quando, por exemplo, Beatriz Nascimento assume o lugar de personagem e revela sua experiência pessoal com a falta da imagem, perdida na diáspora. Ela afirma não se reconhecer na foto de sua carteira de identidade, ao mesmo tempo em que narra sua relação com a foto da irmã (Carmem), ícone de trajetória intelectual; e com a imagem do mito, a estrela de cinema, Marilyn Monroe, ideal eurocêntrico de beleza; e relata ainda sua busca por Deus, mesmo em uma foto de sua primeira comunhão, anunciando seu distanciamento do pensamento cristão, e compartilhando com o espectador seus conflitos e dúvidas. Os movimentos de câmera, que se aproximam das fotografias, podem ser considerados uma tentativa de enfatizar essa procura de Beatriz por sua identidade.

Com o conceito de quilombo como fio condutor de sua narrativa, Ôrí vai à procura dessas origens no continente africano e de sua reconstrução no Brasil, com Palmares no século XVII, mas mostra também como essa organização se atualiza nos anos de 1970 e 1980. Essa pesquisa histórica se junta à busca de Beatriz (narradora e personagem), que revela suas subjetividades, lutas e migrações, com as quais se misturam esse conceito de nação africana e a figura de Zumbi dos Palmares, seu herói civilizador.

A narração de Beatriz indica a necessidade da terra, tanto no quilombo como na religiosidade de matriz africana. Ela salienta ainda a ressignificação do conceito de quilombo: “A terra é o meu quilombo, o meu espaço é o meu quilombo. Onde eu estou, eu estou, quando estou eu sou”. Assim, o quilombo passa a designar diferentes espacialidades negras, como as congadas, a favela, a cultura hip-hop e o terreiro. Mas permanece como nova concepção de nação brasileira, capaz de atuar de forma diferente, contra-hegemônica.

Ao relacionar imagem e corpo à construção da identidade, Beatriz reflete sobre sua busca por visibilidade. “É preciso imagem para recuperar a identidade, tem que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade, então eu conto a minha experiência em não ver Zumbi, que pra mim era o herói”.

Essa invisibilidade remete novamente ao lugar social da população negra, pois mesmo depois de 124 anos de abolição da escravatura no Brasil, homens e mulheres negras, suas culturas, tradições e religiosidades, foram e ainda permanecem invisibilizadas. Assim como a história de Zumbi dos Palmares foi distorcida ou simplesmente ocultada, também a de João Cândido, o Almirante Negro; Luiza Mahin; Carolina Maria de Jesus, e tantos outros, que muitas vezes desconsiderados, tiveram uma atuação significativa na construção da sociedade brasileira, e na luta pela liberdade do povo negro.


Ao analisar a representação da negritude, o teórico jamaicano Stuart Hall enfatiza que o poder na representação é o poder de marcar, atribuir e classificar, o que inclui o exercício do poder simbólico. Por isso, o autor elucida que “estereotipar é um elemento-chave neste exercício da violência simbólica”, subentendida nos discursos e narrativas midiáticas e cinematográficas, e que difunde a estética do racismo, ao reproduzir as desigualdades sociais e econômicas como a ordem natural do mundo; ao ocultar ou distorcer a história, as formas de resistência e as contribuições das sociedades africanas; ao desqualificar o corpo negro e, principalmente, ao impor o embranquecimento cultural e um padrão estético eurocêntrico, que cotidianamente incute em homens e mulheres negras a necessidade de negar a si mesmos.
Por meio da imagem fílmica, Ôrí parece colocar o espectador no lugar daquele que foge, compartilhando a situação dos africanos que, segundo a narração, empreenderam no século XVII a migração para o Sul do país, adentrando na floresta tropical em busca do quilombo.

Os movimentos da câmera que entra no mato, corre, revive a fuga e o desejo por um novo destino, revelam a procura por um lugar social que não seja o do trabalhador/a escravizado/a. A narrativa destaca ainda a importância do corpo na construção da identidade, porque o corpo é ao mesmo tempo individual, traz marcas e lembranças da subalternização histórica que classifica o corpo negro como feio, exótico, inferior; mas é também coletivo, é registro de sua história e de suas migrações. E é também memória, que se revive em ritmo e movimento, seja nos bailes black, no carnaval ou na linguagem do transe. Por isso, Beatriz afirma: “a memória são conteúdos de um continente, da sua vida, da sua história, do seu passado. Como se o corpo fosse o documento. Não é à toa que a dança para o negro é um fundamento de libertação. O negro não pode ser liberto, enquanto ele não esquecer o cativeiro, não esquecer no gesto, que ele não é mais um cativo”.

O destaque que o filme, e principalmente a narração, reserva ao simbolismo do ôrí, remete a importância da cabeça nas religiões de matriz africana. Por meio dela é que se dá a ligação entre o ser humano e o sagrado; e assim como os orixás (divindades), ela também recebe oferendas, em um rito chamado borí (retratado no documentário), e que busca a renovação de forças do indivíduo. Há até um provérbio que diz “Ori buruku, kossi orixá”, ou seja, “cabeça ruim não dá orixá”.

Também é por meio do ôrí, que Beatriz apresenta a religiosidade afro-brasileira como uma filosofia de vida, outra visão de mundo e de poder, uma possibilidade de reencontro com os elementos materiais e simbólicos que restituem, por meio de um contínuo renascimento, a humanidade negada na escravidão. Segundo ela, o “ôrí significa a inserção a um novo estágio da vida, a uma nova vida, um novo encontro. Ele se estabelece enquanto rito e só por aqueles que sabem fazer com que uma cabeça se articule consigo mesma e se complete com o seu passado, com o seu presente, com o seu futuro, com a sua origem e com o seu momento ali”.

Na narrativa, o ôrí se refere à religiosidade, ao retratar o iaô (filhos-de-santo que ainda não completaram os 7 anos da iniciação no Candomblé) em transe; ou é ressignificada, em espaços onde homens e mulheres negras são capazes de reconstruir sua identidade, encontrar seu núcleo. Vale salientar ainda outro significado dado à ôrí, relacionado à formação do movimento negro. “O processo de ôrí é uma recriação de identidade nacional através do Movimento Negro da década de 1970. Nós, na década de 70, éramos mudos. E os outros eram surdos a nós. A partir de 70, começamos a falar sociologicamente”, ressalta Beatriz Nascimento.

Neste documentário, ao narrar sua própria história, Beatriz se junta às migrações, aos conflitos, às tensões e às angústias de homens e mulheres negras, o que significa mudanças na própria linguagem cinematográfica. Logo, Ôrí apresenta subjetividades, compartilha com o espectador a dúvida, a dor e a poesia dessa mulher negra; opta por enquadramentos, nos quais rostos e corpos negros estão de forma predominante no centro ou em destaque, talvez com o intuito de oferecer-lhes a visibilidade negada historicamente.

Essa capacidade de apresentar dimensões que estão relacionadas à memória e às emoções do indivíduo reafirma o caráter performático de Ôrí, característica que segundo o escritor norte-americano Bill Nichols refere-se a filmes que trabalham licenças poéticas, estruturas narrativas menos convencionais e formas de representação mais subjetivas, o que significa também um envolvimento e modos de representação distintos, que constitui um novo olhar sobre a população negra e sua religiosidade, pois aquele/a que normalmente seria o objeto torna-se o sujeito e narra sua própria história. Beatriz Nascimento é narradora, pesquisadora e também uma personagem, relata suas experiências, dirige-se aos espectadores de maneira emocional, divide com eles suas angústias e alegrias, convida-os a experimentar seu “lugar de fala”, compartilha com outras mulheres, como a própria diretora, Raquel Gerber, o “ser” mulher, negra, nordestina e diaspórica.

PARA VER
Ôrí
Direção: Raquel Gerber
1989, vídeo. Relançado em 2009, em formato digital.
Mais informações: www.oriori.com.br

PARA LER
Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento
Alex Ratts
Imprensa Oficial de São Paulo: Instituto Kuanza.
São Paulo, 2007
Disponível em: imprensaoficial.com.br

O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira
Muniz Sodré
Petrópolis: Vozes, 1988.

Negritude, cinema e educação: caminhos para a implementação da Lei 10.639/2003
Edileuza Penha de Souza (Org.).
Editora Mazza
Belo Horizonte: 2007

Crítica da Imagem Eurocêntrica
Ella Shohat; Robert Stam
Editora Cosac Naify
São Paulo, 2006

Artigo: Origem e histórico do quilombo na África
Kabenguele Munanga
Revista da USP, São Paulo, n.28, Dez.95 /Fev.96. p. 53-67
Disponível em: http://www.usp.br/revistausp/28/04-kabe.pdf
CEIÇA FERREIRA é jornalista e doutoranda em Comunicação na Universidade de Brasília. Atua nas áreas de cinema, culturas negras e comunicação em movimentos sociais.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Apoiamos a Jornada Internacional de Cinema da Bahia

Apoie Você também!!!

Apoyen la Jornada Internacional de Cine de Bahía


Pela continuidade, ampliação e fortalecimento da Jornada Internacional de Cinema da Bahia 

A Associação Baiana de Cinema e Vídeo (ABCV) / Associação Brasileira de Documentaristas (ABD-BA), por meio de sua diretoria, vem através desta reafirmar a importância da Jornada Internacional de Cinema da Bahia como um espaço de promoção do audiovisual em todos os seus gêneros e vertentes, bem como nos valores intrínsecos à sua realização. A Jornada é o evento de cinema mais antigo e consolidado na América Latina que traz em seu bojo a atenção para os ideais de “um mundo mais humano, justo e democrático para todos”. Quem lá já esteve presente, como realizador ou público, pode atestar o espaço de resistência que a Jornada sempre foi, desde o seu surgimento. Não à toa, traz os valores de uma geração politizada e comprometida com a realidade brasileira, com a realidade latino-americana e com a formação do ser humano.

De 1972 até agora a história é longa, árdua e merece ser respeitada. A Jornada Internacional de Cinema da Bahia lançou cineastas; trouxe para Salvador a cinematografia de países que lutavam pela sua afirmação e independência; contribuiu na democratização do acesso a tais conteúdos audiovisuais; despertou o olhar para a produção de filmes que não chegariam aqui tão facilmente; aumentou a rede de contatos entre a Bahia, o Brasil e o mundo; levou para as mesas de debate não só a realização e a produção de filmes, mas questionou a identidade brasileira e latino-americana, a produção audiovisual e as políticas na área para todo um continente. Além de tudo isso, levantou bandeiras de lutas político-sociais. E talvez aqui esteja o seu maior valor, o que numa empresa seria chamado de cultura, ou melhor, conjunto de valores, crenças e hábitos que produz normas de comportamento.

A Jornada Internacional de Cinema da Bahia não é uma empresa, mas mudou comportamentos de jovens que tiveram lá, pela primeira vez, seus filmes exibidos, que puderam congraçar, pela primeira vez, com cineastas de todo o mundo e receberam seu primeiro crachá ali como realizador. Foi ali que também nasceu a Associação Brasileira de Documentaristas. Quando um país inteiro estava calado pela ditadura Militar, a Jornada abrigou e foi o lugar de eco da arte audiovisual no Brasil, um espaço de crítica e debate, de aglutinação, de luta dos cineastas brasileiros. E é nesse ponto da história, ou seja, desde o seu início, já que a ABD aniversaria junto com a Jornada, que a Baiana abraça o Tatu.

Ainda que a Jornada tenha muito a comemorar no seu 40o. aniversário, no entanto, alguns fatos ameaçam o merecido regojizo. Além da Jornada Internacional amargar o 5º lugar na suplência do edital de apoio a projetos calendarizados da Secult/Ba, as forças daqueles que sempre acreditaram na Jornada foram esvaídas. Bem dizem que o tatu-bola é o menor tatu brasileiro e o mais ameaçado, porque, “como não cava bem como os outros tatus, é mais fácil de ser caçado na região de seca, onde há pouca comida”.

Está na hora de um ponto de virada nessa história. De uma reação ao que seria a morte da Jornada Internacional de Cinema da Bahia. A ABCV / ABD-Ba conclama a juventude para a mobilização, os realizadores à memória e à ação, e o Governo a refletir que 40 anos de história não podem ser desprezados pela burocracia do Estado.

- Pela continuidade da Jornada Internacional de Cinema da Bahia;

- Pelo fortalecimento da Jornada Internacional de Cinema da Bahia;

- Pelo apoio do Estado da Bahia à Jornada Internacional de Cinema;

- Pelo respeito pelos seus 40 anos de história;

- Pela revitalização da Jornada e seu renascimento;

Assinem, divulguem, compatilhem:

http://www.peticoesonline.com/peticao/apoio-a-jornada-internacional-de-cinema-da-bahia/717

Obrigada. 

Diretoria 
Associação Baiana de Cinema e Vídeo (ABCV)
Associação Brasileira de Documentaristas - Regional Bahia (ABD-Ba)
gRUPO nOVE  y  ANTROcine

Cinema e Ditadura: olhares das mulheres brasileiras

Filmes que pintaram em Teresina...



"Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas".
Manoel de Barros



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segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Artigo "Diálogos com o homem imaginário: Pensando o uso de imagens no ensino de Sociologia"


"Diálogos com o homem imaginário: Pensando o uso de imagens no ensino de 
Sociologia"
"Imaginary dialogues with the man: Thinking the use of images in teaching Sociology"


Alecrides J. R. C. B. de Senna
Mestre em Ciências Sociais pela UFRN
e-mail: alecrides.cs@gmail.com

Resumo:  Abordando a questão do cinema como operador cognitivo nas aulas de Sociologia no Ensino 
Médio, o texto discute a trajetória da disciplina e a concepção de educação na perspectiva da Complexidade, tal como difundida por Edgar Morin. As imagens são pensadas a partir da concepção de Gaston Bachelard com o par ressonância/repercussão, tendo como objeto o filme "O Pianista" e a obra que lhe deu origem.
Palavras-chave: Sociologia, Cinema, Ensino.

Abstract:  Addressing the problematic of the film as a cognitive component on Sociology classes in high 
school, the following article discusses the history of the discipline and the concept of education from the 
perspective of the Complexity, as proposed by Edgar Morin. The images are arranged and debated according to Gaston Bachelard's pair resonance / reverberation, having "The Pianist" (both movie and literary work) as the main focus of this discussion.
Keywords: Sociology, Film, Education. 


Quem quiser conferir meu artigo, acesse o link da Revista Composição, abaixo:

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quarta-feira, 5 de setembro de 2012

OS ENCANTAMENTOS DO CINEMA


Confesso que, em razão de minha indolência e de minha inaptidão a qualquer espécie de atitude social, estou entre aqueles para quem a descoberta de um filme pode transformar-se em um verdadeiro acontecimento moral.  Os poucos filmes extraordinários a que me entreguei desde que existo fizeram despertar em mim as poucas boas qualidades que me coube possuir. Além de me haverem deixado lembranças as mais doces e queridas. Um filme sempre foi para mim um amigo, um conselheiro, um consolador eloqüente e calmo, cujos recursos eu não desejava esgotar com furor, e por isso guardava paciencioso para as grandes ocasiões.
 
Ah! Qual de nós não recorda com ternura os primeiros filmes que devorou ou saboreou! Deparar com uma cena fortuita ligando a tevê, sob a luz de um sol que apaga o brilho cálido do velho filme do adorável Sirk, acaso não faz lembrar o gracioso cenário da tenra e súbita paixão pelo cinema em nossos verdes anos? Não vemos ressurgir diante de nós a sala desolada de mofo da cinemateca onde, enfiados como de praxe em esburacadas e incômodas poltronas, encontrávamos pela primeira vez um filme de Truffaut, um sorriso de Mastroianni, a câmera enfastiada e tão vertiginosa de um Antonioni? Aquela coragem imovediça para resistir às longas sessões duplas ou mesmo triplas das retrospectivas, de cineastas os mais difíceis e seus tempos mortos e no entanto charmosos, o gosto do gazear a aula e fugir para o Bristol, e ao fim do dia a troca de olhares ébrios com os amigos descendo as escadas de volta ao mundo desfilando vívido e alheio entre as palmeiras da Osvaldo Aranha. Sim! Era a vida que chegava veloz e tão prenhe de sentido nas gastas imagens em preto e branco de cópias carcomidas pelo passar das projeções. Cópias que arrebentavam de desejo e de querer viver!
Fernando Mascarello

Traduzido e adaptado livremente de ‘Les enchantements de la lecture’, em “Lettres d’un voyageur”, de George Sand, pseudônimo da francesa Amandine Dupin (1804-1876)