Gilberto Velho, por Karina Kuschnir |
Como disseram Celso Castro e Hermano Vianna, para ele, a antropologia não era o centro do universo. Fazia parte de uma busca pelo conhecimento muito mais ampla, que incluía história, arte, literatura, e a admiração por áreas como a matemática e a filosofia. Não se tratava de uma retórica, mas de uma prática que tinha sempre em vista comparar e colocar os dados em perspectiva. Isso significava que nós, seus orientandos, de repente,tínhamos de interromper nossas pesquisas para ler as memórias de Tarquínio de Souza ou estudar a fundo os jovens turcos, ainda que estivéssemos fazendo trabalho de campo num subúrbio carioca.
Não vou me estender sobre a importância de sua vida acadêmica ou sobre sua dedicada atuação para o avanço das instituições científicas brasileiras. Basta ler com atenção seu imenso currículo Lattes. (E hoje fiquei emocionada ao descobrir que a fotografia escolhida para seu Lattes foi tirada por mim, nos Jardins da Princesa, ao lado de sua sala no Museu Nacional, no dia em que realizamos a segunda etapa da entrevista sobre sua vida e carreira para o projeto Cientistas Sociais - Histórias de Vida.)
Prefiro lembrar de como nos divertíamos com seu humor peculiar, como tão bem escreveu Peter Fry, no texto em sua homenagem para a Associação Brasileira de Antropologia. Quando falava de sua juventude, ou dos primórdios da carreira, acrescentava sempre seríssimo: "Mas isso foi no século treze". Aos jovens alunos do PPGAS, cobrava: "Já aprenderam a cantar o hino da antropologia?" E entoava, operísticamente: "Estranhar, relativizar... " Gostava de nos deixar atônitos com o horário de reuniões e encontros. Depois de consultar sua agendinha preta, dizia: "ok, terça-feira, às 8 horas e 47 minutos". Nos animava com os carimbos da "Venerável Sociedade das Capivaras", caçando insetos com sua gigante espada de madeira, falando de seus tempos de "campeão de esgrima", passando trotes, citando batalhas do Império Bizantino ou contando histórias misteriosas sobre como o cérebro de Euclides da Cunha foi parar nas aulas do Museu Nacional.
Tudo isso vinha junto com uma obsessiva disciplina para orientar, que incluía ler capítulos de tese na mesma tarde em que eram entregues, ligar para saber se estávamos trabalhando às 7 da manhã e marcar bancas com quatro meses de antecedência. Cobrava, reclamava e brigava -- muito. Mas tentava compensar essa rigidez com um imenso afeto e vontade de nos ver crescer, como tão bem lembrou Maria Laura Cavalcanti, em sua breve e linda homenagem hoje, no velório. Gilberto nos acolhia nas dificuldades e vibrava com nossos sucessos. É verdade que resistia a mudanças, às vezes com ferocidade. Mas frequentemente mudava de ideia, aceitando e até se divertindo com propostas as mais inusitadas, desde mudar radicalmente o tema de uma pesquisa até decidir a data de uma defesa de tese com ajuda de um mapa astrológico.
Entre os muitos que o perderam, é difícil separar quem são as centenas de orientandos, alunos, colegas ou amigos. Na vida dele, essas categorias estavam todas misturadas. "As pessoas são complexas", ele gostava de dizer; "não devemos congelar as identidades". Para estar com todos, adorava marcar reuniões, festas, aulas, palestras, almoços e jantares. Nestes, invariavelmente deveríamos aguardar pela chegada de uma "ilustre antropóloga húngara" -- mais uma de suas brincadeiras, que, mesmo depois de conhecida, nos divertia pelo desafio de adivinhar quem faria o papel de convidado-surpresa. Por meio desses encontros, surgiam incontáveis relações: amizades, trocas profissionais, viagens transatlânticas, orientações, pesquisas, publicações, livros e até namoros e casamentos.
Termino agradecendo a todos pelos abraços, telefonemas, e-mails e pensamentos solidários. Embora nada possa reverter essa perda, ajuda muito saber que somos tantos que a sentimos.
Karina
Publicado originalmente em: Laboratório de Antropologia Urbana - UFRJ/IFCHS
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