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| Simbólico desde o seu Cartaz | 
Iracema, uma Transa Amazônica (1976),
 filme dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna, com Paulo César 
Pereio (Tião Brasil Grande)  e Edna de Cássia (Iracema) nos papéis 
principais, se trata de uma desconstrução do Brasil idílico e 
paisagístico que sempre vem atormentar as representações do país, desde 
nosso período colonial. Nessa pegada, sintetiza a contraparte da 
propaganda nacionalista que a ditadura militar, instalada em 1964, 
utilizava para apregoar seus feitos nutridos de desigualdade e construir
 uma imagem favorável do país sob o regime. Um gigante de pés de barro, 
movido pelo autoritário aparelho estatal.
Iracema, aqui, não é a “virgem dos lábios
 de mel” do livro de José de Alencar. É indígena, como a da obra 
romântica, mas é uma garota jogada na miséria dos núcleos depauperados 
do país, no caso, a Amazônia, objeto da propaganda governista do governo
 militar em tempos de construção da Transamazônica. A obra da rodovia 
que, segundo o governo militar da época, serviria para garantir a 
“integração nacional”, foi uma espécie de reedição da desastrosa 
construção da ferrovia Madeira-Mamoré, representada no excelente livro 
de Márcio Souza (que depois se tornaria série televisiva), Mad Maria
 (1980). De construção árdua, no meio da floresta, rodovia e ferrovia se
 tornariam símbolos não exatamente de incompetência estatal. Pior: 
revelariam ao Brasil a exploração econômica das populações 
marginalizadas e um projeto cujo “progresso” se alia e se alimenta da 
pobreza, ampliando e reproduzindo por seus caminhos a histórica exclusão
 e exploração indiscriminada do povo e da terra amazônica.
A Amazônia de Iracema lembra a de Euclides da Cunha, representada no livro póstumo Um paraíso perdido.
 Enviado à Amazônia pelo Itamarati para o reconhecimento da região de 
fronteira entre o Brasil e o Peru, Euclides retrata a miséria da 
população local, que sobrevive da retirada do látex, matéria-prima da 
borracha. Os seringais amazônicos e os personagens desse drama dão ao 
livro um contorno trágico que reedita, de certa forma, o olhar sobre o 
Brasil profundo que Euclides já retratara em Os sertões. Em Iracema,
 é a vida dos pequenos posseiros e das populações que vivem às margens 
da rodovia eternamente incompleta que garante o protagonismo, acossados 
entre os grandes fazendeiros e a dificuldade de cultivar os pequenos 
lotes de terra que possuíam. Sobressai, também, a exploração de 
imigrantes nordestinos que foram à Amazônia em busca de melhores 
condições de vida, tal como no ciclo da borracha. Geralmente, acabam 
submetidos a trabalhos desgastantes nas mãos dos grandes fazendeiros que
 despontavam nas áreas abertas pela rodovia.
Tião Brasil Grande, magistralmente 
interpretado por Pereio, faz a função do, digamos, “advogado do diabo” 
da propaganda da ditadura. O filme foi caracterizado por alguns como drama documental,
 isto é, embora haja uma espécie de roteiro que guie a narrativa, 
distribuído nas falas dos dois protagonistas, há o registro da interação
 entre atores e pessoas reais. O caso é claro em Tião Brasil Grande que,
 como seu próprio apelido diz, repete aos quatro ventos que “acredita no
 progresso de seu país”, sendo a personificação da propaganda governista
 em época do chamado “milagre econômico”. Seu caminhão possui um 
adesivo, por exemplo, com o famigerado slogan “Brasil: ame-o ou
 deixe-o”. Pereio dialoga, assim, ao longo do filme, com as personagens 
reais, vinculadas em sua vida e em sua pobreza com a região amazônica, 
sempre realizando a defesa dos ideais patrióticos e incitando, pelo 
contrapelo de seu falatório ufanista, a que revelem suas questões e a 
precariedade de suas vidas. Em tempos de censura e violência estatal, as
 falas do caminhoneiro são recheadas da mesma desfaçatez governista que 
incita o povo “atrasado” a reconhecer que suas precariedades, na 
verdade, são suas próprias falhas (vemos bem aqui que essas joias do 
pensamento conservador ainda permanecem bem vivas, quarenta anos 
depois).
A Iracema do filme é acompanhada em suas 
andanças em meio às pequenas vilas e cidades da região amazônica. As 
questões relacionadas à rodovia, a pobreza e as carências da população 
do lugar, o descaso do governo e os dramas das vítimas do capital 
agrário são, assim, encarnadas na própria vida da personagem, que vaga 
sem destino a bordo de caronas de caminhoneiros  — assim conhece Tião 
Brasil Grande –, vivendo de programas em pequenos bordéis.
Algumas cenas do filme são de uma 
crueldade lancinante, potencializadas justamente por o filme imiscuir a 
narrativa ficcional em uma prática documental. Assim, por exemplo, são 
as cenas de Iracema prostituída e entregue à miséria; ou ainda quando, 
depois de um programa frustrado em terras de um coronel, testemunha a 
negociação de imigrantes nordestinos para servirem no trabalho da terra –
 uma verdadeira manifestação de trabalho escravo, à custa da ausência de
 perspectivas de uma população inteira.
Gravado em 1974 e lançado em 1976, 
estreia no Brasil apenas em 1981, devido às óbvias impossibilidades 
políticas de exibi-lo no país. O filme, aos nossos olhos de hoje, 
viciados pela produção em alta qualidade de imagem e de som, na qual até
 mesmo um curta de baixo orçamento pode garantir excelência estética por
 conta do equipamento digital, pode parecer primário, quase artesanal. 
No entanto, não é preciso esforço para perceber toda a questão 
angustiante que representa em todos os seus termos, de matéria e forma. A
 junção entre documento e narrativa ficcional aprofunda a crueza das 
cenas representadas dos rincões da desigualdade brasileira. Assim, 
apesar das ressalvas que possamos lhe opor – a precariedade da película e
 sua relativa ligação direta ao contexto específico da época – o filme 
permanece como documento estético do cinema brasileiro e de nossa 
história. Concepção e realização encontram, assim, um casamento 
interessante, no qual é de se perceber um comprometimento enorme com o 
que se coloca, até hoje, como aspectos marginais no país.
Mas, seriam realmente marginais? Ou 
elementos que recusamos a ver, destituídos que estamos do real contato e
 interesse pelo nosso próprio país, guiados que somos pelo poder e seus 
aparatos de comunicação? Iracema é uma verdadeira imersão no 
que já se chamou, em outros tempos, de “Brasil profundo“. E, a pensar 
como o texto que abre o filme, talvez não estejamos longe do cenário 
representado:
“Retratar a Transamazônica, de maneira 
realista, em 1974, representou um grande risco.  As consequências foram 
anos de censura e de luta incessante para fazer o filme chegar ao 
público a que sempre se destinara. Iracema mostra, hoje, uma 
realidade que permanece tão urgente, senão mais, quanto o era na época, 
quando a estrada ainda simbolizava um sonho do ‘Brasil Grande’”.
Existe uma edição de Iracema em 
DVD, infelizmente fora de catálogo – como de costume no que tange ao 
desinteresse da indústria pelo cinema brasileiro. Porém, é possível 
assistir ao filme no YouTube.
originalmente publicado em:  http://livreopiniao.com/2014/05/05/iracema-uma-esquecida-reliquia-do-cinema-brasileiro/
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