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quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A estética do cinema


Nosso encontro com o professor e ensaísta Ismail Xavier, sem dúvida um dos maiores críticos e teóricos de cinema do Brasil, foi motivado pela bem-vinda reedição de Alegorias do Subdesenvolvimento – Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal, livro que faz uma abordagem histórica e estética do cinema  brasileiro moderno entre 1967 e 1970, período marcado tanto pela ebulição artística quanto pelo recrudescimento da ditadura.

Com análises decisivas de filmes como Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967), O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e O Anjo Nasceu (Júlio Bressane, 1969), o livro identi_ ca um universo de obras que, de maneiras diversas, e num curto espaço de tempo, conseguiram refletir todo um trajeto da arte e da política no Brasil.

A reedição vem incrementada de um novo prefácio, em que Ismail coteja as discussões presentes no livro com o panorama atual, e de um posfácio no qual esclarece a noção de alegoria – de extração benjaminiana – que o livro emprega e desdobra. A forma alegórica aparece aí tanto em seu sentido clássico – de uma arte que se apresenta por meio de linguagens cifradas ou de simbolismos disfarçados que visam expressar um conteúdo sem dizê-lo explicitamente – quanto em sua reelaboração moderna, que busca dar conta de manifestações artísticas pautadas na fragmentação, na descontinuidade, na quebra da unidade orgânica da obra de arte convencional (como forma de contestar a própria ideia da História como progresso linear). A alegoria desponta, assim, como ferramenta privilegiada do artista moderno disposto a desmascarar a crise vivida pela sociedade (porém encoberta pelo “otimismo burguês do progresso”) e, mais do que isso, internalizar essa crise na própria forma das obras.

Nesta entrevista, Ismail toma a alegoria como ponto de partida para discorrer sobre diversos temas, desde o legado do Tropicalismo na produção artística atual até as formas de representação da violência no cinema e na televisão (ele nos brinda com uma análise bastante original e reveladora de Tropa de Elite 2).


Luiz Carlos Oliveira Jr – A questão da alegoria é uma das linhas de força de sua investigação teórica e extrapola o assunto do livro agora reeditado, aparecendo também em seus textos sobre o melodrama, o cinema clássico hollywoodiano, os filmes adaptados de Nelson Rodrigues etc. Quando foi que você despertou para a importância da análise do discurso alegórico em seu pensamento sobre o cinema?

Ismail Xavier – Minha lida com o discurso alegórico começou quando escrevi o livro Sertão Mar: Glauber Rocha e a Estética da Fome [publicado pela primeira vez em 1983]. Dadas as características do estilo de Glauber, tratei de um tipo de alegoria ligado a uma visão profética da história, que supõe encontrar, na recapitulação de um passado de sofrimento e cheio de conflitos, um impulso de rebeldia que se põe como a prefiguração de um futuro promissor, no caso da revolução cristalizada no lema “o sertão vai virar mar, o mar virar sertão”, uma fórmula da esperança que se entrelaça com as formas da cultura popular do sertão.

Essa “fórmula da esperança”, nos filmes analisados em Alegorias do Subdesenvolvimento, já se vê suplantada por outro sentimento, mais desencantado politicamente e mais agressivo esteticamente.

Neste livro, a tônica é a variedade dos estilos e da composição da ordem do tempo; minha análise segue muito de perto um rápido deslocamento que põe em confronto diferentes modos de se entender o cinema e o lugar do artista na sociedade, observando um diálogo tenso entre os filmes, que cristaliza a dinâmica de invenção e ruptura havida entre 1967 e 1970, quando lidamos com a polêmica que envolve o Cinema Novo, o Tropicalismo e o Cinema Marginal. Um embate de estilos, uma articulação de perguntas e respostas que marca o cinema pós-1964. Discuto as soluções trazidas pelos filmes para expressar distintas formas de desencanto próprias a uma conjuntura em que há o confronto com a derrota dos projetos de transformação social.

Os temas enfocados no livro sem dúvida ainda reverberam na produção artística de hoje…

O debate sobre aquele momento da cultura e da sociedade marca sua presença hoje na própria produção de cinema, como é o caso de Belair (Bruno Safadi e Noa Bressane, 2009), Luz nas Trevas (Helena Ignez, 2011), Rocha Que Voa (Erik Rocha, 2002), Tropicália (Marcelo Machado, 2012) e Loki – Arnaldo Baptista (Paulo Henrique Fontenelle, 2009).
A análise crítica e o debate em torno de cineastas como Glauber, Sganzerla, Bressane, Joaquim Pedro, Tonacci e Walter Lima estarão sempre em pauta, e a atuação de Tonacci, Bressane e Walter Lima, bem como de outras figuras do Cinema Novo e do Cinema Marginal (Carlos Reichenbach e Neville D’Almeida, Carlos Diegues e Paulo Cesar Saraceni), consolidou os elos entre o passado e o presente, em alguns casos retomando a relação do cinema com os segmentos com os quais houve o intenso diálogo – talvez o mais intenso de todos – num momento em que músicos como Caetano, Gil e Tom Zé, o Teatro Oficina e outros segmentos da cultura visual e do espetáculo compuseram a constelação que respondeu ao desafio lançado por Terra em Transe em 1967, no mesmo mês de maio em que causava impacto a instalação “Tropicália”, de Hélio Oiticica, no MAM do Rio de Janeiro.


Embora haja uma série de filmes brasileiros recentes que trabalham na chave alegórica, você não tem a sensação de que se diminuiu o espaço para um cinema intelectualizado disposto a condensar numa só narrativa toda a história e a conjuntura do país?

Quando se pensa o tratamento de questões nacionais no cinema, a primeira impressão seria de que nos anos 60-70 houve maior lugar para abordagens totalizantes, ao contrário do que estaria acontecendo hoje. Mas olhando mais de perto, podemos ver que o quadro não é bem este.
De um lado, já houve a colocação da alegoria em nova chave em 1969-70, como observo no livro ao analisar os filmes de Bressane e Tonacci. Não foi e não seria o caso de reduzir tudo a uma alegoria do Brasil que é apenas um segmento desse jogo. Por outro lado, a produção contemporânea repõe a “questão nacional” sob diferentes formas, seja no segmento mais ligado à tradição moderna, em que temos exemplos de trabalhos voltados para a formação histórica e a cultura brasileira, como nas séries de TV de Luiz Fernando Carvalho (A Pedra do Reino, 2007) e em filmes como Bocage (Djalma Batista, 1998), Amélia (Ana Carolina, 2000), Desmundo (Alain Fresnot, 2003), Brava Gente Brasileira (Lúcia Murat, 2000), que estão longe de ser narrativas de fundação afirmativas.
Ao lado disto, há diagnósticos da situação contemporânea que acentuam questões identitárias, como Terra Estrangeira e Central do Brasil, ambos de Walter Salles Jr., que reúnem os paradigmas da migração e da identidade, da família e da nação. Em outro recorte, Cronicamente Inviável (Sérgio Bianchi, 2000) traz uma explícita alegoria do Brasil, um concerto do ressentimento nacional que coroa a reiteração sintomática de personagens ressentidos no cinema recente, figuras que vivem o descompasso entre ambições de consumo e sua realidade efetiva, às vezes insuportável como nos filmes que tematizam a violência dos pobres entre si – Como Nascemos Anjos (Murilo Salles, 1996), Orfeu (Carlos Diegues, 1999), Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2001), Contra Todos (Roberto Moreira, 2003) – ou focalizam o ressentimento da classe média em seu afã de ascensão: Redentor (Cláudio Torres, 2004) é francamente alegórico nesse sentido.

As expectativas em torno do papel do cineasta, contudo, mudaram. Uma condensação histórica aos moldes de Macunaíma ou de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (Glauber, 1969), hoje, soaria como ambição anacrônica?

Houve, sem dúvida, o senso da “perda do mandato popular” que tornava o cineasta convicto de sua condição de porta-voz da comunidade imaginada (a nação), vista como mais coesa do que a realidade viria mostrar; em verdade, esta ruptura com a noção de mandato já se deu no período do cinema marginal, a partir de 1969, como vemos na terceira parte do livro. De lá para cá, os rumos da cultura e da política minaram de vez esta ideia do “mandato popular” e suscitaram uma nova autoimagem em que o cineasta valoriza o pragmatismo, tal como também ocorre na vida política, exaltando mestres da viabilização. A homenagem de Baile Perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997) a Benjamin Abrahão, o cineasta que filmou Lampião, é um bom exemplo, tal como o tratamento irônico do pragmatismo dos pobres feito pela narração de O Homem Que Copiava (Jorge Furtado, 2003).

As migrações, as pulsões de evasão observadas nas regiões mais pobres do Brasil foram um tema recorrente no cinema moderno, como se observa em Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, ou em Trópicos (1967), de Gianni Amico. Na última década, a questão do deslocamento retornou com força, muitas vezes como busca existencial ou odisseia subjetiva que se substitui ao périplo extremamente físico de outrora.

Você lembrou bem. O cinema moderno teve a migração como um dos seus pontos fortes na discussão de questões sociais, em que o deslocamento dos personagens era um imperativo motivado por uma condição de pobreza insuportável. O cinema recente repõe o tema da migração, mas o associa a projetos de superação de impasses que estão em outra esfera, mais existencial, afetiva, compondo road movies mais aparentados aos de Wim Wenders em sua alegoria da condição contemporânea marcada por figuras desgarradas que, no caso brasileiro, assumem o movimento como opção pela deriva libertadora que repõe impasses, como em Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005), ou se cumpre exitosa, como em O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006). Há também a figura da viagem como romance de formação, caso de Diários de Motocicleta (Walter Salles Jr., 2004). São versões da “procura” mais laicas do que as jornadas de conversão ou de busca de um Bem Supremo próprias à tradição religiosa.

Alegorias do Subdesenvolvimento é tencionado por dois momentos distintos, a saber, o período 1967-70, sobre o qual o livro se debruça, e o período 1984-93 em que ele foi gestado e que lhe empresta sua atmosfera. Seria interessante você traçar um paralelo entre esses dois períodos e o momento atual, em que o subdesenvolvimento sai de pauta e um novo Brasil é promovido (o ufanismo estilo Rede Globo tem papel importante nessa promoção).

Claro que muita coisa mudou na política e na economia; já não estamos naquela condição de subdesenvolvimento dos anos 60, mas a inclusão de milhões de brasileiros na rede de consumo, a atenuação dos efeitos da modernização conservadora de que trataram as alegorias do cinema moderno, não significa a superação efetiva do subdesenvolvimento, embora esta noção não esteja mais tão presente, substituída por “emergente” ou componente do BRIC.
Resta ainda o país recordista de desigualdade, com baixo índice de qualidade de vida, bolsões de trabalho escravo e franca violência no campo e na cidade, só geradora de crises institucionais quando se dá à vista de todos nos centros urbanos.
Esta crise do espaço urbano, em que temos áreas fora do controle do Estado-nação e o poder está nas mãos de grupos armados que se conectam ao comércio global de drogas, armas e, no limite, seres humanos, tem sido o foco de um cinema de grande sucesso voltado para o que se reconhece como questão nacional emblemática.



Cidade de Deus, Tropa de Elite

Tropa de Elite 1 e 2 tratam o problema da chamada guerra do tráfico de forma curiosamente inspirada nos westerns de John Ford, que alegorizam passagens espinhosas da fundação nacional de uma sociedade que alcançou no século 20 uma condição vitoriosa. Padilha trabalha com tensões não resolvidas em pontos nevrálgicos em que a nação revela o seu colapso, mas, no final, pode ver uma luz no fim do túnel. No primeiro Tropa, o Capitão Nascimento carrega o fardo de policial durão, violento e torturador em nome do que entende ser o imperativo da guerra de que é herói, mas pagando o preço da desumanização que o isola (sua mulher o abandona, a família recolhe simbolicamente a crise nacional); o filme endossa o seu ponto de vista ao desmoralizar os personagens e discursos que buscam criar mediações entre os pólos do conflito e encontrar soluções fora deste imperativo de guerra total – seriam hipócritas. É o momento Ethan, o personagem de John Wayne em Rastros de Ódio (Ford, 1956).

E como isso se desdobra em Tropa de Elite 2?

Tropa 2 começa no hospital onde o capitão visita o filho baleado pelo crime organizado, ponto de partida do longo flashback; aprenderemos que esta bala estava dirigida a Freitas, um líder defensor dos direitos humanos que passa pela prova de coragem (e não hipocrisia no olhar do capitão) ao arriscar a vida  na negociação para resolver um conflito ocorrido numa prisão. De rivais, a figura da violência como dever cumprido e a figura da negociação se tornam parceiras de uma luta em que o novo inimigo da ordem são as milícias que passam a controlar os morros.
O capitão muda seu ponto de vista, aceita a presença do legislativo no jogo e faz sua denúncia numa comissão de inquérito, mas é Freitas, como homem da cultura, quem está em condições de pleitear um lugar no congresso nacional, ficando o capitão na retaguarda, comoo fez Doniphon (de novo, John Wayne) em O Homem Que Matou o Facínora (Ford, 1962), enquanto Stoddard (James Stewart), o advogado, homem dos livros como o jovem Lincoln, vai para Washington.
Stoddard e Doniphon disputaram a mesma mulher, e o advogado levou. Freitas, não por acaso e dentro do protocolo do melodrama em que família e nação se identificam (desde D.W. Griffith), está, no momento de Tropa 2, casado com a ex-mulher de Nascimento e, para completar a alegoria nacional, o final promissor se encarna na recuperação do filho que, sob o olhar e a torcida de todos – pai, mãe, padrasto e plateia –, sobrevive. Nas imagens finais sobrevoamos Brasília. Não muito depois destes filmes, houve a ocupação dos territórios que estavam fora do controle, com larga cobertura televisiva onde se repetiu com ênfase os emblemas da presença do Estado-nação nas favelas escolhidas como lugar das UPPs, com direito ao hastear das bandeiras estadual e nacional, como muito se viu em Hollywood.


Essa comparação entre Tropa de Elite 2 e O Homem Que Matou o Facínora, além de totalmente original, é de fato reveladora…

Há muitas diferenças entre Tropa 1 e 2 e o cinema de John Ford, como também há muito mais coisa em Tropa 2 que não dá para tratar aqui, mas considero esta conexão entre os filmes e a mise-en-scène da ocupação sob os olhares orquestrados da mídia um exemplo de como a retórica das alegorias nacionais permanece vigente como espetáculo que, no filme, traz acenos de um futuro ainda pontuado de interrogações, e na TV se exibe e se comenta em chave edificante.

A violência urbana e os demônios sociais da classe média também são tratados de forma alegórica, e dialogando com o cinema de gênero, em filmes de menor repercussão midiática?

Ao lado daqueles casos em que está em pauta a violência social mais endêmica, há outras formas de se usar a mediação de gêneros da indústria em filmes de baixo orçamento que compõem a alegoria voltada para problemas contemporâneos. Corpo (Rubens Rewald e Rossana Foglia, 2007) dialoga com a tradição do “fantástico” para trabalhar a relação do presente com o período da ditadura a partir de fato paradoxal que ocorre no IML de São Paulo. E o mesmo ocorre na reflexão sobre as relações de classe no darwinismo social urbano feita em Trabalhar Cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011), cujo cenário central é um supermercado. Ainda em conexão com o cinema moderno, o segmento mais empenhado na busca de novas dramaturgias tem construído situações-laboratório que se cristalizam em outros espaços emblemáticos, um apartamento ou outro espaço habitado por um grupo de jovens que compõem comunidades que, com maior ou menor organização, valem como célula política, como no caso de A Concepção (José Eduardo Belmonte, 2005) e de Os Residentes (Tiago Mata Machado, 2010), algo que nos lembra A Chinesa (1967), de Godard, embora sejam distintos seus tempos e seus ideários. Algo semelhante acontece em A Alegria (Felipe Bragança e Marina Meliande, 2010) e A Febre do Rato (Cláudio Assis, 2011), em outra chave na qual o espaço-laboratório é uma comunidade que se estende pelo bairro e se compõe de personagens cuja pauta é a ação poética afirmativa de contestação da ordem.

Luiz Carlos Oliveira Jr. é cineasta, crítico e editor da revista online Contracampo

Publicado originalmente em: http://revistacult.uol.com.br/home/2013/01/a-estetica-do-cinema/livro 

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