Capuzzo, Heitor. Lágrimas de Luz, o drama romântico no cinema, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999, 221 pp.
Disse Mássimo
Canevacci: "o cinema possui um enigma mítico em seu poder de
atração"(1984). Estar numa sala de cinema escura é estar imerso em um
reino que mistura realidade e fantasia, dando asas aos nossos sentimentos e
sonhos. Se o filme em questão for um drama romântico, talvez se potencializem
ainda mais as possibilidades de catarse e identificação com as tramas. Afinal,
qual de nós, simples mortais, não tem um amor romântico (ou, pelo menos, uma
idéia do que seja isso) para nos fazer entrar em comunhão com os dramas vividos
pelos personagens?
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Capuzzo começa a
responder esta questão logo nas páginas iniciais do livro, quando analisa o
episódio "A mãe e a lei", de Intolerância, filme de Griffith. Segundo ele, o plano-detalhe
das mãos tensas da mulher aguardando o veredicto do marido, que desvia o
espectador de seu rosto e o leva a construir por si só a antecipação do
veredicto (que será negativo ao marido), faz que ele participe da construção
narrativa. Ou seja, o recurso de utilizar estruturas
em contraponto, articulando internamente os planos e
a busca constante de um diálogo entre o público e a trama seriam
algumas das estratégias narrativas do melodrama. A essas, Capuzzo acrescenta o uso
de detalhes, entre eles os adereços (no caso de Griffith,
o enxoval de casamento de dois jovens), que permeiam toda a trama como
expressivos recursos dramáticos para acentuar conflitos individuais, sociais
ou, mesmo, acontecimentos históricos. Nos planos-detalhes, Capuzzo vê grande
parte do exercício de concentração dramática e de busca da empatia do público.
Outro recurso muito utilizado é o embate entre sociedade
e concretização de projetos individuais,
bem como a construção dos personagens principais como representantes
de valores ideais e, por isso mesmo, isolados de alguma maneira da
sociedade mais ampla. Estas estratégias levam à identificação do público com os
personagens e com as tramas.
Além dessas
características gerais do universo do melodrama, Capuzzo vai apontando também
as estratégias próprias de cada momento histórico, desde o cinema mudo,
passando pelo cinema monumental de Cecil B. De Mille nos anos 20, pelos
cineastas estrangeiros tais como Victor Sjöstrom, de O vento, e
Friedrich Murnau, de Tabu - A story of south Seas, pelo advento do som, do uso da cor, do cinema dos
anos 40, até chegar aos anos 90. O trabalho de Capuzzo é tão rico, tanto na
extensão do período abordado, quanto na quantidade de filmes analisados, além
da descrição densa à la Geertz
das cenas, que o trabalho de resenhar o livro torna-se difícil, obrigando-nos a
recortes pesarosos. Assim, para evidenciar o modo como Capuzzo analisa os
filmes e suas estratégias, recortaremos algumas passagens, tais como o período
entre os anos 20 e 40 e, do mesmo modo que Capuzzo, terminaremos com as
passagens referentes ao filme Titanic.
Capuzzo afirma que o
período do cinema mudo e de seu sucesso comercial no cinema industrial
americano deve muito a Cecil B. De Mille, cuja principal característica era a
momumentalidade, criada a partir do uso de trucagens e efeitos especiais.
Segundo ele, a diferença entre De Mille e Griffith é que De Mille arrisca
dentro de possibilidades seguras tais como o impacto fácil, os efeitos
sensacionalistas, o excesso de estímulo e o exagero de figurantes e adereços,
gerando um cinema pouco sutil, mas que numa realidade industrial tornou-se um
modelo de sucesso a ser alcançado e que Hollywood não cessará de utilizar, como
veremos depois em Titanic,
já nos anos 90. O que interessou a De Mille foram os efeitos especiais, que
procuram o espetacular, numa encenação marcada pela teatralidade, apostando no
impacto que eles causariam no espectador. Os contrapontos são amplamente
utilizados, bem como a particularização de conflitos históricos em alguns personagens,
construindo uma síntese dramática de grande apelo sobre o espectador.

Capuzzo mostra como
no filme são estabelecidos dois níveis: o factual, pragmático, em que os
personagens demonstram um comportamento direto, sem ambigüidades; e uma onírica
subjetividade, na qual elementos concretos articulam-se para revelar o universo
interior dos personagens centrais. Serão criados paralelismos entre os espaços
internos e externos. Em vez de buscar efeitos especiais, Sjöstrom procura a
nuança e a sutileza em um filme que segundo Capuzzo é duro, árduo e cruel, assim
como o cenário em que se passa a trama. Desse modo, como Griffith, Sjöstrom
utiliza-se de detalhes que permeiam toda a trama e, no caso, a areia surgirá
como ligação entre vários contrapontos. Ela concentrará as atenções do público
na construção intimista da personagem central, utilizando, metaforicamente, as
ações catastróficas da natureza para acentuar a sensação de que a personagem
central é "uma estranha no ninho", levando o público a rememorar
situações de desprezo e abandono e, assim, se identificar com o drama da
personagem.

Outro ponto
importante que Capuzzo salienta é que "a produção do cinema industrial
organizou-se a partir de uma estratégica classificação em gêneros, ou seja, modalidades dramáticas que permitem o
estabelecimento das principais características comuns de cada ciclo de
filmes" (: 71). Segundo ele, o cinema industrial optou por uma dramaturgia
que estabeleceu no conflito a base de sua articulação e, para tal, direcionou o
olhar do espectador, insistiu no recorte da imagem, acrescentou o som em
contraponto e articulou essa imagem sonorizada com outras imagens, procurando
uma empatia imediata com o grande público.
Um aspecto curioso da
obra de Capuzzo é que, embora desde o início do livro ele procure desvendar as
estratégias narrativas do drama romântico, apenas na página 71 ele dará uma
definição desse gênero e iniciará uma sistematização das características do
mesmo. Talvez ele o faça dessa maneira por considerar que, embora as estruturas
do drama romântico já estejam presentes desde o início das produções
cinematográficas, será apenas por volta de 1935 que as características deste
ciclo de produção ficarão mais evidentes. Outro ponto importante é que Capuzzo
não diferencia claramente o drama romântico do melodrama, fazendo uso destas
duas expressões como se elas fossem sempre a mesma coisa: Capuzzo entende por drama
romântico o ciclo de produções cujo tema é desenvolvido a
partir de um par amoroso central que irá pontuar as várias peripécias e afirma
que neste gênero as estratégias narrativas são facilmente identificáveis com o
universo do melodrama. Entre essas características, Capuzzo salienta as reiterações
temáticas, temporais e espaciais.
Entre as temáticas estão
os erros de informação, a "lua-de-mel" no meio da narrativa, a
gravidez inesperada, a separação entre pais e filhos, a experiência da morte, a
utilização de cartas, os conflitos entre o par romântico e o meio social, o
tratamento de exceção dado ao par romântico.
As temporais incluem
o tratamento de urgência do amor recém-descoberto, o imediatismo na formação do
casal, a abrupta reação externa ao par central, a súbita despedida de um dos
amantes.
Nas espaciais temos
a proposta de níveis diferenciados para os amantes e os demais personagens,
através de primeiros planos com a utilização do fundo em contraponto, o claro e
o escuro, o alto e o baixo, o interior e o exterior, geralmente sugerindo uma
subjetividade e uma objetividade.
Dessa forma, são
articuladas reiterações como a narrativa em dois blocos, permitindo uma
circularidade ou um caráter cíclico, o uso de flashback para
articular passado e presente, a narração em off, comentários musicais enfáticos, mutação do tempo
e do espaço em simultaneidade, devido ao constante movimento da narrativa,
criando uma instabilidade no par central.
Capuzzo salienta que
o drama romântico contém em si uma certa urgência (o amor surge de maneira
repentina, os amantes são apresentados logo no início do filme e têm pressa, a
declaração de amor tem que ocorrer rapidamente, etc). Ele trabalha situações em
seus extremos e, por isso, é frágil e sublime. As coincidências, muito
presentes no drama romântico, são estratégias narrativas que sugerem ações
divinas (como não lembrar aqui de Milan Kundera, em A
insustentável leveza do ser: "Para que um amor seja inesquecível, é preciso
que os acasos se juntem desde o primeiro instante, como os passarinhos sobre os ombros de São
Francisco de Assis".
Para terminarmos o
passeio por esse maravilhoso livro de Capuzzo, vamos ver como ele analisa dois
filmes que, segundo ele próprio, são emblemáticos do gênero descrito acima. São
eles A Ponte de Waterloo (Warterloo Bridge - EUA,
1940, Mervyn LeRoy) e Titanic (EUA,
1997, James Cameron).
O primeiro conta a
história de uma bailarina que se apaixona por um jovem capitão inglês, durante
o início da Primeira Guerra Mundial, em Londres. Essa súbita paixão resulta
numa tentativa de casamento que é truncada pela iminência da guerra e o
imediato recrutamento do capitão Roy para a frente de batalha. A estrutura
narrativa possui uma circularidade que é marcada pela repetição dos
acontecimentos e que permite ordenar as articulações necessárias para que o
tempo e o espaço possam simultaneamente contrapor o particular e o geral,
através da subjetividade do casal e dos acontecimentos marcantes que os rodeiam
de forma reiterada. A apresentação dos amantes acontece logo no início do
filme, bem como o detalhamento dos possíveis elementos que permitirão o
encontro mágico. No prólogo já estão apresentadas algumas informações que
permitem ao espectador deduzir o destino final.
O segundo conta a
história do naufrágio do transatlântico Titanic ocorrido em 1912, alternando
fatos documentais com uma narrativa ficcional, envolvendo um jovem casal
apaixonado e os impasses sociais que os separam. Rose e Jack, os protagonistas,
são de níveis sociais opostos e ocupam diferentes níveis espaciais (ela na
primeira classe, na parte mais alta do navio e ele na terceira, no porão).
Começará entre os dois uma relação diferenciada, que leva o público à
cumplicidade. A "lua-de-mel" no meio do filme parece apontar para um
destino trágico.
Cameron trabalha o
roteiro em dois níveis temporais, fazendo uso de flashback. No presente, um grupo pretende encontrar tesouros
do Titanic, em especial uma jóia em formato de coração cuja existência eles
conhecem por causa de um desenho de uma jovem usando-a. Quando esses fatos são
transmitidos pela televisão, uma senhora idosa, que percebemos ser Rose, se
reconhece no desenho e vai ao encontro da expedição em alto-mar. Trata-se da
"ressurreição" de Rose. Tem início uma viagem na memória que
alternará passado e presente. Rose dialogará imaginariamente com Jack. Por fim,
a jóia será devolvida ao mar, numa metáfora da morte de Rose e da entrega de
seu coração a Jack. Será usado o constante recurso de contrapor alto (o convés,
o céu estrelado) e baixo (os porões, o fundo do mar), assim como a tendência de
isolamento do par romântico.
O impacto visual e
dramático do filme é incontestável. Nesse sentido, Capuzzo afirma que aliado
aos aspectos dramáticos, encontra-se na encenação de Cameron um esplendor
visual até então inédito na história do cinema industrial. Os recursos digitais
permitiram pela primeira vez que o naufrágio do Titanic se concretizasse,
virtualmente, nas telas, rivalizando em impacto com a trama desenvolvida. O que
poderia ser conflitante, harmonizou-se, inusitadamente. O grande espetáculo
catastrófico torna-se contraponto dramático à fragilidade do jovem casal. (:
216)

Com essa comparação,
Capuzzo encerra o livro cometendo o único deslize desta obra tão interessante
para a antropologia visual e para os amantes do cinema. Trata-se do final
abrupto, que além de introduzir uma comparação não esperada1, também não
reforça (como foi feito em cada um dos filmes anteriores) os elementos cruciais
que caracterizam os dois últimos filmes como dramas românticos. É claro que a
estrutura é perceptível ao leitor, mas se o autor declara Titanic como
emblemático do gênero, talvez não fosse demais reforçar essa associação.
Em todo caso, Capuzzo
deve ser elogiado pelo árduo e extenso trabalho analítico que tão habilmente
teceu as tramas do drama romântico, desvendando as estratégias narrativas que
nos fazem chorar "lágrimas de luz" e, novamente, e quiçá sempre, nos
enredam em sua magia.
Notas
1 Ele
diz que analisará A Ponte de Waterloo e Titanic, mas, logo em seguida, em vez de compará-los,
deixa de lado o primeiro para introduzir em seu lugar E
o vento levou.
Bibliografia
CANEVACCI, M. 1984 Antropologia
do cinema, São Paulo, Brasiliense.
In: Rev. Antropol. vol.44 no.2 São
Paulo 2001
+iNFOS: www.mirelaberger.com.br
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