Pretendo com este trabalho fazer uma
relação sobre a Antropologia e o Cinema, começando por resumir a
história da antropologia e o do cinema. Irei usar como exemplos vários
filmes, sendo que dois deles, “Nanook, o Esquimó” (1922), de Robert Flaherty e “A Linha Vermelha” (2012), de José Filipe Costa,
irão ser analisados mais detalhadamente, para exemplificar esta relação
existente entre a antropologia e o cinema. Escolho estes dois filmes
(1922 e 2012), de épocas completamente distintas, para mostrar que a
antropologia e o cinema mantém-se unidos, há mais de um século.
A Antropologia e o Cinema
A antropologia é a ciência que trata o
Homem e a Humanidade, e esta é, ao contrário do que muitos pensam,
bastante antiga, tendo começado a ser discutida na Antiguidade Clássica,
entre os filósofos da época. No entanto, foi a partir do século XIX que
surgiu uma maior vontade, por parte do Homem, em compreender o mundo em
que vive. Com o surgimento da corrente filosófica o Positivismo,
pensada por Augusto Comte e John Stuart Mill, esta defendia a ideia de
que o conhecimento cientifico é a única forma do conhecimento verdadeiro
e racionalista, aboliu por completo a religião e o conhecimento
supersticioso. A ciência e a procura do conhecimento total contribuíram
para um século cheio de progressos artísticos, tecnológicos, medicinais,
etc.
Foi neste contexto de grande evolução
cientifica que surgiu a fotografia e, quase no final do século, o
cinema, com a invenção do cinematógrafo, pelos irmãos franceses Lumière.
A data tradicional para o nascimento do cinema é a de 28 de Dezembro de
1895, tendo sido a primeira projecção pública de um filme. A partir
desta data muita coisa mudou na antropologia. A antropologia é uma
ciência composta por várias escolas ou ramos, como por exemplo, a
Antropologia Cultural (estuda as diferentes culturas humanas) e a
Antropologia Visual ou Antropologia da Imagem. Este último ramo estuda
as imagens nas áreas da fotografia e do cinema. Os antropólogos viram o
cinema como uma ferramenta perfeita para reproduzir a realidade, podendo
assim aprofundar e registar os seus estudos sobre o Homem.
Segundo o centenário realizador Manoel de Oliveira, numa das suas entrevistas, este afirma que o filme dos irmãos Lumière, “A saída dos trabalhadores da fábrica Lumière”
(1895), pode ser considerado um documentário, se os irmãos Lumière
filmaram a saída dos trabalhadores, sem que estes se apercebessem de que
estavam a ser filmados. Ou pode ser uma ficção, se os irmãos Lumière
pediram aos seus trabalhadores que saíssem da fábrica, para serem
filmados. Caso a primeira sugestão seja verdadeira, pois nunca
saberemos, este será então o primeiro documentário da história do
cinema.
Um etnógrafo é alguém que usa a
etnografia (método utilizado pela antropologia na recolha de dados) para
observar as diferenças entre as sociedades, entre povos. Surge então o
filme etnográfico, que é uma vertente do cinema documental. O filme
etnográfico tem praticamente o mesmo percurso que o próprio cinema, pois
surgem na mesma altura. A antropologia dentro do cinema usa o filme
etnográfico para estudar e explorar o Homem na sua dimensão social e
cultural. Há o interesse comum em conhecer outras culturas e
civilizações (os seus rituais, cerimónias, tradições e estilos de vida),
muitas vezes longínquas e quase extintas. Os antropólogos usam o cinema
como um método de pesquisa, nunca abandonando o documento escrito, mas
para eles, o cinema é essencial, pois abrange um público mais vasto. A
definição de filme etnográfico é bastante complexa, pois as suas
barreiras são muito ténues. Não pode contudo ser banalizado, apesar de
alguns teóricos extremistas afirmarem que todos os filmes são filmes
etnográficos, pois podem ser vistos, pelo olhar da antropologia, como um
estudo do Homem, de uma sociedade. “Qualquer filme por mais ficcional é um documento da vida contemporânea”
(Eliot Weinburger, 1994) (1). Os filmes etnográficos usam depois a
etnologia (ciência que estuda os factos, no âmbito da antropologia
visual) para estudar os dados recolhidos pela etnografia.
É costume dizer-se que o filme “Nanook, O Esquimó” (1922), de Robert Flaherty, é o primeiro documentário da história do cinema, o “berço” do documentário cinematográfico. Flaherty faz uma das primeiras abordagens a uma sociedade primitiva, os inuíte, filmando o quotidiano de uma família de esquimós. Este é um filme particular e inovador, para a época, por apresentar um tipo de abordagem, que na altura não era comum. O realizador registou, durante mais de um ano, o quotidiano de uma família de esquimós, que era composta por Nanook, o chefe e caçador da família e por duas mulheres e três crianças. O filme mostra-nos as suas atividades do dia-a-dia, como a caça, a pesca e a construção de um iglu, que é uma das cenas mais famosas do filme. Só foi possível filmar dentro do iglu porque o realizador pediu a Nanook que construísse um três vezes maior, para que a câmara coubesse e a sua equipa, e para que deixasse entrar bastante luz para as filmagens. O realizador mostra-nos o sofrimento desta gente que tenta sobreviver contra a Natureza selvagem e violenta. O realizador ia montando o filme durante a rodagem, e mostrava as imagens filmadas aos inuítes, para que estes pudessem intervir e avaliar, comentando se aquilo que filmaram representava a realidade. “Nanook, O Esquimó” é hoje um marco histórico do cinema documental. Muito do seu sucesso na altura da estreia, deveu-se ao facto de Nanook e a sua família terem morrido numa tempestade de neve, pouco depois de o filme ter sido editado, pelo que levou muito público curioso aos cinemas. O filme vive rodeado de polémicas sobre o facto de o realizador ter encenado muitas das cenas do filme, ficando-se na dúvida se o filme será um documentário, ficção ou uma mistura dos dois. Estas questões entre documentário e ficção são hoje objecto de estudo em muitas escolas de cinema. O que é certo é que, apesar de o filme ter gerado alguma controvérsia, tornou-se rapidamente nos anos seguintes, num clássico de referência.
Pergunta então o espectador, no final do
filme, “será isto é um documentário ou uma ficção?”. Na verdade é
ambos, é um híbrido. Flaherty era um romântico e graças à forte
influência de D. W. Griffith, que criou a linguagem cinematográfica, e de Dziga Vertov,
que desenvolveu a montagem cinematográfica, ele pode encenar e
manipular o filme como bem entendeu, tentando recriar a “realidade”
daquela família de esquimós, como um espelho cultural e social da
civilização inuíte. Pode-se dizer que este filme antecipou a separação
das fronteiras entre a ficção e o documentário, se é que alguma vez essa
barreira existiu.
O filme etnográfico pode também não
tirar partido da montagem, ou seja, o realizador pode optar por não
intervir diretamente na construção do seu filme, tendo então, apenas
imagens em bruto, tornando-se num documento sem qualquer manipulação no
que foi registado pela câmara. É importante referir que o filme
etnográfico não era só feito por realizadores, mas também por muitos
antropólogos, que usavam o vídeo para conhecer outras realidades. No fim
esse vídeo/filme pode ser usado em contextos diferentes, participação
em festivais de cinema, usado para estudos, uso educativo nas escolas,
etc.
Para o realizador e etnólogo francês
Jean Rouch, Dziga Vertov e Robert Flaherty, são os “pais fundadores” do
cinema etnográfico. Vertov contribuiu bastante para o filme etnográfico
com o seu filme “O Homem da Câmara de Filmar” (1929),
um documentário sobre o quotidiano de uma cidade russa. Vertov captava o
real tal como ele é, pois para ele só existia uma verdade visível.
Associando o olho humano à câmara, Vertov criou o cine-olho (o
kino-pravda), que se caracterizava por um cinema sem personagens, sem
cenários e sem argumento.
Foi nos anos 60, com a nova vaga francesa e o surgimento do som direto que apareceu também o cinema-verdade. Edgar Morin e Jean Rouch
propuseram, em manifesto, um novo tipo de documentário, que recorre
sobretudo ao uso das novas tecnologias. Este movimento foi fortemente
influenciado pelo kino-pravda de Dziga Vertov. O filme “Crónica de um Verão”
(1960) revolucionou bastante o género documental. Abandonou a voz off,
pelo som direto, onde muitas vezes entrevistavam pessoas na rua,
questionando-as se eram felizes. O filme foca duas jovens parisienses
sobre o seu estado de felicidade.
Em Portugal o filme etnográfico expandiu-se sobretudo após o 25 de Abril. No entanto, “Douro, Faina Fluvial” (1931) de Manoel de Oliveira (influenciado por “Berlim, Sinfonia de uma Cidade”, de Walter Ruthmman) e “Maria do Mar” (1930) de José Leitão de Barros, eram já duas grandes referências nacionais.
“Linha Vermelha” (2012), realizado por
José Filipe Costa, é outro exemplo de um filme etnográfico, considerado
até um dos melhores filmes portugueses dos últimos anos. Este é um
estudo sobre outro filme, “Torre Bela” (1975), do alemão Thomas Harlan,
feito no pós 25 de abril, durante o Verão Quente de 75. “Linha
Vermelha” tem pano para muitas mangas, podendo-se falar de múltiplos
temas, desde a história de Portugal, à história do cinema, como também
sobre o papel do cinema, o papel da montagem, do som e da imagem.
Podíamos falar de Eisenstein, Dziga Vertov e de Leni Riefenstahl ou de
Estaline e Hitler. Enfim, é um daqueles filmes que quando termina,
apesar de nos dar muitas respostas, levanta também muitas questões. Mas o
filme tem apenas 80 minutos. Através de imagens do filme “Terra Bela”,
filmadas por Harlan e a sua equipa, podemos conhecer o que foi realmente
o PREC (Processo Revolucionário em Curso) e o que se perdeu e o que se
ganhou. O PREC foi o período das atividades revolucionárias, que se
iniciaram a 25 de abril de 74 e que terminaram em 76, aquando da
aprovação da constituição portuguesa. O ano de 1975 foi o período mais
empolgante, tenso e dramático deste processo, daí ser conhecido como o
“Verão Quente de 75”. O alemão vem para Portugal filmar esses
acontecimentos que se passaram durante a revolução (foram cerca de 100
dias de rodagem, de abril até agosto de 1975). É com imagens deste
filme, “Torre Bela”, que vemos o “palácio” do duque de Lafões a ser
ocupado, tal como a sua herdade; uma discussão sobre a quem pertence uma
enxada; reuniões em praça pública onde todos falam ao mesmo tempo e
ninguém se entende, etc. José Costa revisita através deste filme aqueles
que viveram esse período, onde muitos foram felizes. Wilson Filipe é um
deles e o herói de “Torre Bela”. O filme do Costa é narrado pelo
próprio, quase como uma carta de despedida a Harlan, que faleceu em 2010
e Costa teve a oportunidade de o entrevistar. Outro ponto importante
deste filme é que Costa tenta perceber de que maneira Harlan interveio
nos acontecimentos que parecem desenrolar-se naturalmente frente à
câmara. É através de entrevistas com membros da equipa de “Torre Bela”
que entendemos o processo de filmagem deste filme. É aqui que entra a
questão – o que é a realidade? Qual é a força da imagem e do cinema? De
uma forma simples peguemos no exemplo das fotografias que pareciam armas
de fogo (canhões), mas que na realidade eram carros de boi. Ou nas
imagens da ocupação do “palácio”, que aparentemente parece que as
pessoas estão a roubar, mas não estão. São estas questões que são
analisadas e penso que bem explicadas. O cinema é e sempre foi uma
interpretação da realidade. Poderemos falar de cinema-verdade. Mas o que
é a verdade? Não há duvida que Harlen tentou intervir nos
acontecimentos, tal como José Costa o faz. Mais do que um filme sobre o
reviver de “Torre Bela”, “Linha Vermelha” é um estudo sobre o poder da
imagem, sobre a força do cinema e como essa molda uma sociedade.
Existem muitos outros exemplos, parecidos com “Nanook” e “Torre Bela”, como “O Triunfo da Vontade” (1935), de Leni Riefenstahl, e “Outubro” (1928), de Serguei Eisenstein,
onde o último recria todos os acontecimentos que levaram à Revolução de
1917, num estilo documental. Todo o filme é ficcional, com atores que
interpretam personagens históricas como o próprio Lenin. No entanto, na
altura da sua estreia o filme foi bastante contestado, pela veracidade
dos acontecimentos e por ter uma montagem bastante confusa para o
espectador. Mas não deixa de ser um documento de estudo e uma ferramenta
educativa, para antropólogos.
Conclusão
O que leva ainda hoje os cineastas a
interessarem-se pela antropologia? Talvez a busca da realidade, pela
criação de um documento que preserve a memória de alguém ou de algo.
Outra questão complexa que nunca teve uma resposta clara foi se deve ou
não o realizador intervir nos acontecimentos que estão a ser filmados
pela câmara, como aconteceu com Thomas Harlan no filme “Torre Bela”. A
verdade é que a maneira como vemos e analisamos uma determinada coisa
será diferente de pessoa para pessoa.
Podemos portanto concluir que o cinema é
obviamente uma ferramenta antropológica poderosíssima, por vezes
polémica, mas indispensável para a antropologia. “Cinema e
antropologia partem ou prestam particular atenção ao detalhe (…) a
partir do qual e com o qual se constrói o argumento ou a narrativa.”
(2). Foi esta atenção ao detalhe, como dizia Fisher na perspectiva do
joalheiro para o detalhe etnográfico, que atraiu os antropólogos para
fazerem cinema. A antropologia contribuiu bastante para o
desenvolvimento do cinema, assim como o cinema desenvolveu a
antropologia, pois permitiu conhecer outras realidades. O cinema foi e
continua a ser usado na divulgação do saber, indo ao detalhe no
tratamento de sociedades.
Notas:
1) “Jean Rouch – Filme etnográfico e Antropologia Visual”, de José da Silva Ribeiro, (2007), página 10;
2) “Cinema e antropologia”, de José
da Silva Ribeiro, página 13, CEMRI – Laboratório de antropologia visual,
Universidade Aberta;
Trabalho desenvolvido para o Mestrado em Comunicação Audiovisual, Especialização em Fotografia e Cinema Documental, para a UC de Contexto e Análise Narrativas (janeiro 2013). Docente – Professor Doutor José Ribeiro.
publicado originalmente em: http://www.cinema7arte.com/site/?p=7582
Nenhum comentário:
Postar um comentário