Participe / Participate

Participe enviando contribuições (filmes, textos, links, dicas, etc ...) para antrocine@gmail.com

Send contributions to antrocine@gmail.com

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A verdade extática

Para Rita


Por Werner Herzog
Leio o coração humano. É uma parte importante de minha profissão. Ao ler o coração humano, não se aprende só a experiência, se pode ensiná-lo. Falo de experiências muito elementares. O que significa estar preso? O que é ter fome? O que é criar filhos? O que é a solidão no deserto? O que significa estar enfrentando a um verdadeiro perigo? Experiências básicas, o mais elementar que existe. Mas a maioria de nós ignora essas experiências, exceto a de ter filhos. Não vejo a ninguém na França ou na Espanha que tenha tido a experiência da fome. Eu sim. Não sei de quase ninguém que tenha sido maltratado na prisão. Eu sim. Na África, duas ou três vezes. Tem feito longas caminhadas? De experiências assim provêm minhas capacidades como cineasta.

Sigo vivo como cineasta porque mudo. Não sigo acreditando que vivo nos anos ’70. Muitos cineastas ficaram bloqueados nos anos ’70, como Syberberg. Muitos desapareceram. Não evoluíram. Também existe uma coerência em meus filmes. Há certos motivos, certa insistência na visão. Certa dramaticidade na direção. Estou seguro disso. Ao mesmo tempo é uma obra aberta em todas as direções. Se considerarmos a Luís Buñuel, sua visão permanece coerente, ainda que seus filmes surrealistas iniciais, seus filmes dos anos ’50 no México e também os dos anos ’60 na França sejam muito diferentes. Bastam vinte segundos de imagens para reconhecer um filme de Buñuel.

Sou tão cinéfilo como é possível ser. Adoro o cinema. Mas não necessito ver três filmes por dia. Para mim basta ver três bons filmes ao ano. Em um ano que seja de uma boa colheita para o cinema, se produzem cinco ou seis bons filmes no mundo. No mais. Esse tem se convertido no maior problema dos festivais: seu número cresceu até alcançar, não sei, algo como a cifra de 2800 filmes. Pode estar bem ver cinco ou seis filmes. Às vezes também pode se estar bem e se contentar com o pior que exista. Precisamente para aprender o que não se deve fazer. Os filmes ruins são sempre mais instrutivos que os bons.
Em meu cinema, o estilo não prevalece sobre o tema. O estilo não se fixa em um rito. Eu fujo do estilo. A substância de meus filmes esta em outra parte. Se nunca me preocupei pelo estilo é porque o estilo, inevitavelmente, se impõe através de mim. Não pelo seu tema, pois sei que existem muitas maneiras de tratar um mesmo tema.

Não me considero um artista. Nem sequer sei o que é um artista. Custa-me se ater a uma definição. O cinema é um emprego, na medida em que ganho dinheiro. De forma que é onde trabalho profissionalmente. Sei que é um trabalho profissional. Sou um verdadeiro profissional. É onde ganho a vida. Não passo fome, tenho bastante dinheiro para pagar um café. Bastante dinheiro para pagar o aluguel. Nesse aspecto, sim, posso entender que o que faço seja uma profissão. Mas “artista” é uma palavra que me custa muito entender. E isso se torna mais difícil com os anos na medida em que cada vez desconfio mais da arte. Sobretudo desde já fazem vinte anos. É muito difícil de explicar. Gostaria de falar, entre aspas, da arte moderna. Podemos compreender em que situação esta a arte observando ao mercado de arte, aos leilões, ao mundo das galerias. Há algo aí profundamente inquietante e extremamente suspeito. Como podem os “artistas” deixar que a arte seja isto o que se tenha convertido? Assistimos a uma completa distorção dos valores. Ir a uma vernissage – o que aconteceu uma ou duas vezes na minha vida – é a experiência mais desalentadora que se possa imaginar. Tão desalentadora que não a voltarei a ter nunca. A maneira em que se apresenta o trabalho, o público que vai a esses eventos, o mercado de arte, tudo isso dá náuseas.
A mim custa acatar as categorias “documentário” e “ficção”. Todos meus documentários são estilizados. Em nome de uma verdade mais profunda, uma verdade mais extática – o êxtase da verdade – contêm partes inventadas. As vezes posso dizer então que se trata de ficções disfarçadas. A expressão tão pouco é de todo apropriada. Mas é a explicação que me ocorreu. Grizzly man é muito diferente de El pequeño Dieter necesita volar ou do El país del silencio y la oscuridad ou Lecciones de oscuridad. Eu deixei de me fazer a questão sob sua classificação.

Atrás das imagens, atrás da visão, atrás da historia, atrás da gramática da narração e da gramática da imagem há algo cuja experiência o cinema pode oferecer em muito raras ocasiões, se toca então numa verdade mais profunda. Não ocorre muitas vezes, acontece em poesia. Ainda quando tinha me distanciado um tanto dele com os anos – é um poeta para os que têm quinze, dezesseis ou dezessete anos –, ao ler a Rimbaud se sente instantaneamente que temos roçado algo extático. Tocamos uma verdade que esta atrás das coisas. Algo que não necessitamos analisar. O sabemos de imediato. Rimbaud obviamente se interessava muito nas iluminações. Mas os fatos não iluminam. Os fatos criam normas. Só a verdade ilumina.

Estas declarações de Werner Herzog foram tomadas do livro Manual de sobrevivência, uma extensa entrevista ao cineasta realizada por Hervé Aubron e Emmanuel Burdeau em 2008 e que El Cuenco de Plata acaba de traduzir ao castelhano e editar em sua coleção Extraterritorial/Cine.

Fonte em castelhano: http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/radar/9-8947-2013-07-01.html

Livre Tradução Coletivo Antro

Nenhum comentário:

Postar um comentário