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sexta-feira, 30 de maio de 2014

Iracema: uma esquecida relíquia do cinema brasileiro


Cartaz do filme "Iracema, uma Transa Amazônica" (1976),
Simbólico desde o seu Cartaz
Iracema, uma Transa Amazônica (1976), filme dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna, com Paulo César Pereio (Tião Brasil Grande)  e Edna de Cássia (Iracema) nos papéis principais, se trata de uma desconstrução do Brasil idílico e paisagístico que sempre vem atormentar as representações do país, desde nosso período colonial. Nessa pegada, sintetiza a contraparte da propaganda nacionalista que a ditadura militar, instalada em 1964, utilizava para apregoar seus feitos nutridos de desigualdade e construir uma imagem favorável do país sob o regime. Um gigante de pés de barro, movido pelo autoritário aparelho estatal.

Iracema, aqui, não é a “virgem dos lábios de mel” do livro de José de Alencar. É indígena, como a da obra romântica, mas é uma garota jogada na miséria dos núcleos depauperados do país, no caso, a Amazônia, objeto da propaganda governista do governo militar em tempos de construção da Transamazônica. A obra da rodovia que, segundo o governo militar da época, serviria para garantir a “integração nacional”, foi uma espécie de reedição da desastrosa construção da ferrovia Madeira-Mamoré, representada no excelente livro de Márcio Souza (que depois se tornaria série televisiva), Mad Maria (1980). De construção árdua, no meio da floresta, rodovia e ferrovia se tornariam símbolos não exatamente de incompetência estatal. Pior: revelariam ao Brasil a exploração econômica das populações marginalizadas e um projeto cujo “progresso” se alia e se alimenta da pobreza, ampliando e reproduzindo por seus caminhos a histórica exclusão e exploração indiscriminada do povo e da terra amazônica.

A Amazônia de Iracema lembra a de Euclides da Cunha, representada no livro póstumo Um paraíso perdido. Enviado à Amazônia pelo Itamarati para o reconhecimento da região de fronteira entre o Brasil e o Peru, Euclides retrata a miséria da população local, que sobrevive da retirada do látex, matéria-prima da borracha. Os seringais amazônicos e os personagens desse drama dão ao livro um contorno trágico que reedita, de certa forma, o olhar sobre o Brasil profundo que Euclides já retratara em Os sertões. Em Iracema, é a vida dos pequenos posseiros e das populações que vivem às margens da rodovia eternamente incompleta que garante o protagonismo, acossados entre os grandes fazendeiros e a dificuldade de cultivar os pequenos lotes de terra que possuíam. Sobressai, também, a exploração de imigrantes nordestinos que foram à Amazônia em busca de melhores condições de vida, tal como no ciclo da borracha. Geralmente, acabam submetidos a trabalhos desgastantes nas mãos dos grandes fazendeiros que despontavam nas áreas abertas pela rodovia.

Tião Brasil Grande, magistralmente interpretado por Pereio, faz a função do, digamos, “advogado do diabo” da propaganda da ditadura. O filme foi caracterizado por alguns como drama documental, isto é, embora haja uma espécie de roteiro que guie a narrativa, distribuído nas falas dos dois protagonistas, há o registro da interação entre atores e pessoas reais. O caso é claro em Tião Brasil Grande que, como seu próprio apelido diz, repete aos quatro ventos que “acredita no progresso de seu país”, sendo a personificação da propaganda governista em época do chamado “milagre econômico”. Seu caminhão possui um adesivo, por exemplo, com o famigerado slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Pereio dialoga, assim, ao longo do filme, com as personagens reais, vinculadas em sua vida e em sua pobreza com a região amazônica, sempre realizando a defesa dos ideais patrióticos e incitando, pelo contrapelo de seu falatório ufanista, a que revelem suas questões e a precariedade de suas vidas. Em tempos de censura e violência estatal, as falas do caminhoneiro são recheadas da mesma desfaçatez governista que incita o povo “atrasado” a reconhecer que suas precariedades, na verdade, são suas próprias falhas (vemos bem aqui que essas joias do pensamento conservador ainda permanecem bem vivas, quarenta anos depois).

A Iracema do filme é acompanhada em suas andanças em meio às pequenas vilas e cidades da região amazônica. As questões relacionadas à rodovia, a pobreza e as carências da população do lugar, o descaso do governo e os dramas das vítimas do capital agrário são, assim, encarnadas na própria vida da personagem, que vaga sem destino a bordo de caronas de caminhoneiros  — assim conhece Tião Brasil Grande –, vivendo de programas em pequenos bordéis.

Algumas cenas do filme são de uma crueldade lancinante, potencializadas justamente por o filme imiscuir a narrativa ficcional em uma prática documental. Assim, por exemplo, são as cenas de Iracema prostituída e entregue à miséria; ou ainda quando, depois de um programa frustrado em terras de um coronel, testemunha a negociação de imigrantes nordestinos para servirem no trabalho da terra – uma verdadeira manifestação de trabalho escravo, à custa da ausência de perspectivas de uma população inteira.

Gravado em 1974 e lançado em 1976, estreia no Brasil apenas em 1981, devido às óbvias impossibilidades políticas de exibi-lo no país. O filme, aos nossos olhos de hoje, viciados pela produção em alta qualidade de imagem e de som, na qual até mesmo um curta de baixo orçamento pode garantir excelência estética por conta do equipamento digital, pode parecer primário, quase artesanal. No entanto, não é preciso esforço para perceber toda a questão angustiante que representa em todos os seus termos, de matéria e forma. A junção entre documento e narrativa ficcional aprofunda a crueza das cenas representadas dos rincões da desigualdade brasileira. Assim, apesar das ressalvas que possamos lhe opor – a precariedade da película e sua relativa ligação direta ao contexto específico da época – o filme permanece como documento estético do cinema brasileiro e de nossa história. Concepção e realização encontram, assim, um casamento interessante, no qual é de se perceber um comprometimento enorme com o que se coloca, até hoje, como aspectos marginais no país.

Mas, seriam realmente marginais? Ou elementos que recusamos a ver, destituídos que estamos do real contato e interesse pelo nosso próprio país, guiados que somos pelo poder e seus aparatos de comunicação? Iracema é uma verdadeira imersão no que já se chamou, em outros tempos, de “Brasil profundo“. E, a pensar como o texto que abre o filme, talvez não estejamos longe do cenário representado:
“Retratar a Transamazônica, de maneira realista, em 1974, representou um grande risco.  As consequências foram anos de censura e de luta incessante para fazer o filme chegar ao público a que sempre se destinara. Iracema mostra, hoje, uma realidade que permanece tão urgente, senão mais, quanto o era na época, quando a estrada ainda simbolizava um sonho do ‘Brasil Grande’”.

Existe uma edição de Iracema em DVD, infelizmente fora de catálogo – como de costume no que tange ao desinteresse da indústria pelo cinema brasileiro. Porém, é possível assistir ao filme no YouTube.
 
originalmente publicado em:  http://livreopiniao.com/2014/05/05/iracema-uma-esquecida-reliquia-do-cinema-brasileiro/

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