Uma cultura à deriva
Por CARLOS ALBERTO MATTOS
Há quase 40 anos, Gustavo Dahl filmava Uirá, um Índio em Busca de Deus. No
ano passado, revi o filme e escrevi a seguinte resenha para a Filme
Cultura 55, cujo tema de capa foi o cineasta então recém-falecido:
O
Cinema Novo vai ao encontro de Darcy Ribeiro e saem para passear no
Maranhão. Há uma certa alegria nesse encontro, traduzida pelo humor
etnográfico, as cores intensas da fotografia de Rogério Noel, a
espontaneidade do registro documental, a ironia com que são narrados os
contatos entre índios e brancos. Uirá é mais que tudo uma
tragédia. No entanto, deixa-se atravessar por um sopro mais leve, que se
diria insuspeitado no Gustavo Dahl carrancudo de O Bravo Guerreiro. O próprio cinema brasileiro já estava em outra no ano da graça de 1973.
Os cinemanovistas já não tinham tanto
interesse em compreender ou revolver o Brasil, mas sim em exprimi-lo de
uma maneira que cativasse um público mais amplo. Começava a prosperar
uma consciência que, cinco anos depois, o mesmo Gustavo batizaria com o
slogan “mercado é cultura”. Instalada a Embrafilme, conquistar o mercado
com a parceria do estado, ainda que contra este, passava a ser uma
meta, plenamente justificada como ação de resistência cultural.
A resistência cultural, aliás, está no centro de filmes do período, como Uirá e Amuleto de Ogum.
A religiosidade popular ganhava tintas mais positivas que na década
anterior, quando importava denunciá-la como instrumento de alienação
política. Uirá, o índio, empreende uma viagem espiritual em busca de
Maíra, o deus criador, pois quem chega vivo à casa de Maíra não morre
mais. Mas essa viagem é tanto ascese ao paraíso quanto descida ao
inferno. Não é motivada exatamente por um desejo de purificação, e sim
pelo luto e a desesperança. Existe um paradoxo nesse Uirá que resiste
procurando a morte.
Darcy Ribeiro recolheu diversos casos de
suicídio indígena. Esse é um deles, transcorrido em 1939 e narrado na
reportagem antropológica Uirá vai ao encontro de Maíra – as experiências de um índio urubu-kaapor que saiu à procura de Deus
(Revista Anhembi nº 76, São Paulo, 1957, p. 21-35). O filme começa com
uma morte e termina com outra. Na primeira cena, Uirá (Érico Vidal) e
Katai (Ana Maria Magalhães) choram diante do corpo do filho mais velho, o
mais querido do pai, falecido por causa de uma doença de branco. Consta
que um terço da população urubu-kaapor morreu por epidemias nos
primeiros 25 anos de contatos com os não-índios. Uirá parece carregar o
peso desse holocausto. Um misto de raiva e depressão o abate. Ele não
pesca, não caça, quase não fala. Não dá sinais de revolta contra a outra
civilização. Em lugar disso, vive a ruptura com seu próprio mundo, que
se expressa um tanto hollywoodianamente na cena em que ele destrói os
utensílios antes de atear fogo a sua choça.
O trajeto da família, da aldeia até São
Luís, é a jornada mítica do “bravo guerreiro” que precisa vencer uns
tantos obstáculos para alcançar sua meta. Enfrenta a estranheza de
jagunços, o moralismo da sociedade branca, a repressão policial e, por
fim, os favores dos “civilizados”, que equivalem a outro tipo de prisão.
Ao mesmo tempo, esse trajeto ecoa outras viagens míticas do cinema
brasileiro, como a dos negros de Aruanda e a dos caboclos de Vidas Secas.
Com esse último há simetrias notáveis: a incompreensão na cidade, o
choque com o poder constituído, a cadeia, a posse de um papagaio. O mito
da corrida para o mar, que encerrava Deus e o Diabo na Terra do Sol,
também tem um correspondente na mitologia dos urubus-kaapor. Fica no
mar a morada de Maíra, para onde se atira Uirá numa cena que também
reverbera a corrida de Geraldo del Rey no filme de Glauber.
Ou seja, Uirá articula discursos
clássicos do Cinema Novo com uma disposição relativamente nova para o
cinema-espetáculo. Mesmo filmado em 16mm, segundo encomenda da TV
italiana, o filme tem um arcabouço do gênero aventura, abrindo as lentes
para as externas do Maranhão, explorando a palheta cromática da pintura
e dos artefatos indígenas, e apresentando a nudez “natural” dos atores
que vivem os índios. Em 1973 os cinemanovistas estavam dispostos a fazer
filmes de consumo.
Alguns
detalhes de construção narrativa sobressaem. Na recriação do estudo
antropológico pelo olhar da ficção, Gustavo Dahl criou uma curiosíssima
narração em off de Katai, a mulher de Uirá – e em português,
idioma que a personagem não dominava. Katai narra algumas ações, assim
como o pensamento do marido e os mitos ligados a Maíra. Ela é uma
consciência superior instalada dentro do filme, que fala por si mesma,
pelo diretor e por Darcy Ribeiro. Na prática, Katai é a personagem
ativa, uma vez que Uirá se move como que impelido pela crise. A mulher é
quem prepara o corpo dele para a viagem, é quem grita quando a família é
agredida, é quem tem olhos curiosos para a hilaridade de certas
situações. Katai ri e chora, enquanto Uirá se retrai ao peso de seu
drama íntimo. A vulnerabilidade dela faz um contraponto vital para a
obsessão mística dele.
À medida que o itinerário de Uirá e
família se aproxima da capital, o filme sai de uma postura algo
documental (registro dos índios na aldeia, empenho verista nas cenas de
trabalho e pesca, câmera relativamente solta) para uma chave mais
teatral e impostada. Aos indígenas, bons selvagens flagrados em processo
de desintegração múltipla, é reservado um estilo mais livre, ao passo
que aos citadinos cabem o tom hierático e a realidade assumida como
representação. Os diálogos, escassos a princípio, vão se transformando
em discursos, culminando com o pronunciamento demagógico do
representante do Serviço de Proteção aos Índios, papel defendido com
gosto – e bastante canastrice – pelo próprio diretor.
O código naturalista, aliás, nunca
mereceu muita atenção da parte de Gustavo Dahl. Seu modelo de direção de
atores tendia a privilegiar a clareza do texto em detrimento da
entonação adequada. Dizer, mais que interpretar. No entanto, os índios
de Uirá, talvez por não representarem o mundo da palavras e dos
discursos, movimentam-se e expressam-se de modo mais maleável. Em uma
palavra, parecem mais autênticos – em que pese a inadequação física de
Érico Vidal (rosto marcado por espinhas, pernas cabeludas, resquícios de
barba e bigode) ou a falta de destreza de Ana Maria Magalhães nos
afazeres da aldeia.
A trilha sonora também acompanha o
desenho do percurso aldeia-cidade. No início, cantos indígenas muito bem
utilizados como fundo dramático para o pesar e o desmoronamento de
Uirá. Durante a viagem, passamos a ouvir cantos de vaqueiros, seguidos
pelo choro urbano de Pixinguinha, uma cena inesquecível de amor mendigo
ao som de Patativa na voz de Vicente Celestino e, finalmente, uma melíflua canção americana, signo de um ensaio de sedução.
Uirá foi o maior gesto de
sedução de Gustavo Dahl em direção às plateias na sua carreira de
diretor. Não chegou a ser um grande sucesso, mas foi recebido como um
dos melhores filmes feitos até então sobre a questão indígena. Ganhou a
Margarida de Prata da CNBB e, no Festival de Gramado, o Prêmio Especial
do Júri e o de melhor atriz para Ana Maria. Uma das imagens
inesquecíveis do filme é o cocar de Uirá boiando no leito do rio em
seguida ao seu mergulho derradeiro. Essa imagem-síntese de uma cultura à
deriva e despovoada se compara à de Paulo César Pereio com o revólver
na boca na cena final de O Bravo Guerreiro, ícone da morte da retórica política.
Quatro anos depois das filmagens de Uirá,
outro índio sairia de sua aldeia para percorrer meio Brasil após
escapar do massacre de sua gente. A história de Carapiru seria contada
recentemente por Andrea Tonacci em Serras da Desordem, nome da serra onde foi filmada boa parte de Uirá.
Na dramaturgia brasileira sobre os povos indígenas, o filme de Gustavo
Dahl é parada obrigatória. Quando nada, por conciliar idealização e
tragicidade, um olhar amoroso e a noção de um fracasso inevitável.
Publicado originalmente em: http://carmattos.com/2012/09/24/uma-cultura-a-deriva/
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