Confesso que, em razão de minha indolência e de minha inaptidão a qualquer espécie de atitude social, estou entre aqueles para quem a descoberta de um filme pode transformar-se em um verdadeiro acontecimento moral. Os poucos filmes extraordinários a que me entreguei desde que existo fizeram despertar em mim as poucas boas qualidades que me coube possuir. Além de me haverem deixado lembranças as mais doces e queridas. Um filme sempre foi para mim um amigo, um conselheiro, um consolador eloqüente e calmo, cujos recursos eu não desejava esgotar com furor, e por isso guardava paciencioso para as grandes ocasiões.
Ah! Qual de nós não recorda com ternura os primeiros filmes que devorou ou saboreou! Deparar com uma cena fortuita ligando a tevê, sob a luz de um sol que apaga o brilho cálido do velho filme do adorável Sirk, acaso não faz lembrar o gracioso cenário da tenra e súbita paixão pelo cinema em nossos verdes anos? Não vemos ressurgir diante de nós a sala desolada de mofo da cinemateca onde, enfiados como de praxe em esburacadas e incômodas poltronas, encontrávamos pela primeira vez um filme de Truffaut, um sorriso de Mastroianni, a câmera enfastiada e tão vertiginosa de um Antonioni? Aquela coragem imovediça para resistir às longas sessões duplas ou mesmo triplas das retrospectivas, de cineastas os mais difíceis e seus tempos mortos e no entanto charmosos, o gosto do gazear a aula e fugir para o Bristol, e ao fim do dia a troca de olhares ébrios com os amigos descendo as escadas de volta ao mundo desfilando vívido e alheio entre as palmeiras da Osvaldo Aranha. Sim! Era a vida que chegava veloz e tão prenhe de sentido nas gastas imagens em preto e branco de cópias carcomidas pelo passar das projeções. Cópias que arrebentavam de desejo e de querer viver!
Fernando Mascarello
Traduzido e adaptado livremente de ‘Les enchantements de la lecture’, em “Lettres d’un voyageur”, de George Sand, pseudônimo da francesa Amandine Dupin (1804-1876)
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