‘Brasil tem que encarar a demarcação de terras indígenas’, diz Lucia Murat
No final dos anos 90, Lucia Murat foi até o Mato Grosso do Sul rodar ‘Brava Gente Brasileira’, uma ficção que tinha como parte do elenco de apoio os Kadiwéu, comunidade indígena de conhecido espírito guerreiro, inclusive com papel de destaque na Guerra do Paraguai (1864-1870).
No final dos anos 90, Lucia Murat foi até o Mato Grosso do Sul rodar ‘Brava Gente Brasileira’, uma ficção que tinha como parte do elenco de apoio os Kadiwéu, comunidade indígena de conhecido espírito guerreiro, inclusive com papel de destaque na Guerra do Paraguai (1864-1870).
Assista ao filme aqui!!!
Depois das filmagens, manteve contato com o povo de lá à distância, até 2009, quando voltou ao local. Ao presenciar a entrada da eletricidade e suas inevitáveis consequências, teve a ideia de fazer o documentário ‘A Nação Que Não Esperou Por Deus’, codirigido por Rodrigo Hinrichsen, que chega este mês aos cinemas, depois de passar pelo Festival É Tudo Verdade.
Ao montar sua equipe para o novo projeto e começar a viabilizá-lo, foi surpreendida pela eclosão da disputa pela retomada de terras, com os Kadiwéus querendo de volta o espaço que foi invadido pelos pecuaristas da região. A questão ocupa boa parte do filme, principalmente no final, quando vemos uma negociação delicada entre os dois grupos, conduzida pelo líder indígena Ademir – que, após o filme, foi assassinado por outro Kadiwéu, devido a uma disputa de poder interna.
Durante as filmagens, a cineasta teve acesso ao Relatório Figueiredo, tema do vídeo exclusivo de making of, disponível abaixo, e sobre o qual comentou posteriormente: “Nós já tínhamos voltado da primeira fase de filmagem quando tive acesso ao Relatório Figueiredo. Primeiro, soube que das 7 mil páginas, algumas tratavam da questão das terras Kadiwéu. A partir daí, conseguimos a íntegra das 7 mil paginas e dividimos entre a equipe da produtora para podermos rastrear tudo que o relatório continha sobre os Kadiwéu. Terminamos esse trabalho poucos dias antes de voltarmos para a segunda fase das filmagens”.
“Foi chocante descobrir a forma como os fazendeiros entraram na reserva, e com a ajuda do SPI (Serviço de Proteção aos Índios). Essa descoberta foi fundamental pois nos permitiu encerrar o filme mostrando como a invasão das terras tinha começado”, completa.
O Relatório Figueiredo | Making Of: [https://www.youtube.com/
O documentário trata também de questões como o avanço da igreja evangélica entre os índios, sempre mais preocupado em apresentar o painel da região e evitando juízos de valor.
Sobre essa volta ao território que havia explorado antes, a situação dos Kadiwéu hoje e o processo de distribuição de ‘A Nação Que Não Esperou Por Deus’, Lucia Murat falou ao TelaTela:
TelaTela – Depois dessa imersão, qual é sua visão sobre a questão indígena no Brasil?
Lucia Murat – Acho que a questão fundamental é a questão da terra. Essa sim é a questão que o Brasil tem que encarar, a demarcação das terras indígenas. Acho que a partir desse ponto eles vão ter condições de definir as vidas deles. A gente, enquanto País, deve às comunidades indígenas e tem que realizar.
De que forma você acha que as realidades do homem branco e da comunidade indígena podem coexistir?
Existe uma possibilidade de comunhão. Existe na medida em que, por exemplo, eu sou branca e fiz dois filmes sobre eles sem nunca fingir que eu não era branca, nunca fingi que não era estrangeira àquela realidade. Foram dois filmes feitos com muito carinho e com muita tentativa de eu abrir meu coração, abrir minha cabeça, para aquela realidade. Por mais que seja uma visão “de branco”, não vou dizer que não é.
Eu fiz um documentário muito tempo atrás chamado ‘O Olhar do Estrangeiro’, que era basicamente sobre os clichês da indústria cinematográfica sobre o Brasil. Da mesma forma que eu acho que diretores como Orson Welles vêm ao Brasil e são estrangeiros, têm o olhar de fora, mas eles querem vivenciar aquilo de uma outra maneira, eu tentei vivenciar com carinho e me abrindo ao máximo para aquela cultura. E nesse sentido acho que consegui ter uma integração. Agora, é óbvio que você tem todos os outros aspectos negativos que estão no documentário.
Inclusive essa presença da Igreja Evangélica, uma questão que é sugerida no filme, mas não de um jeito pesado.
Não, porque eu não acho que seja fundamental, nem que isso não possa retroagir. Por exemplo, várias daquelas pessoas que estavam na cena da “luta” com os pecuaristas são evangélicas. Praticamente todos eles [os Kadiwéu] são. O que não significa que eles são fundamentalistas.
Eles são evangélicos um pouco como o Ademir me disse uma vez: “Eu sou por agradecimento”. Porque a primeira igreja evangélica que chegou lá funcionou um pouco naquilo que a Funai não fazia. Fornecia medicamentos, assistência médica. Isso não significa para mim que eles sejam evangélicos totalmente fundamentalistas. Ele [Ademir] fudamentalmente era uma liderança indígena no processo da retomada. Então não vou considerar que ele era uma evangélico. Para mim, ele era uma liderança indígena.
Você acha que a igreja soube aproveitar essa carência e se fortalecer em cima disso?
Tranquilamente. Acho que a igreja evangélica entra no espaço do poder público. À medida que esse espaço for ocupado pelos próprios índios, que eles consigam continuar nesse processo de retomada de suas terras e de redescoberta da história, eu acho que isso pode ser regredido. Por isso não coloquei de um jeito pesado.
Num momento do filme é mostrado um índio pintando o rosto e falando da importância de fazer este ritual antes de ir para a guerra. Depois, mais para frente, o Ademir, líder da comunidade, está de cara pintada no centro de uma discussão entre os Kadiwéu e os pecuaristas locais. Eles então já têm consciência que a guerra hoje saiu do campo físico e partiu para o campo político?
Sim, têm muita consciência disso. Eu me lembro que uma das fazendeiras chegou lá e disse “eu fiquei arrasada que eu cheguei aqui e o Ademir estava pintado”. E ele fez isso como manifestação mesmo, apesar de que no tempo todo na reunião ele tem uma capacidade de negociação e de diálogo incrível, no bom sentido. Ele sabe que é necessário negociar, e faz isso muito bem.
O filme terá uma distribuição alternativa, além do circuito comercial. Por que esta escolha?
Hoje o circuito comercial está muito fechado para qualquer filme que trabalhe fora do ‘entertainment’, seja documentário ou ficção. Então a gente quer criar circuitos alternativos, onde esses filmes e essas discussões possam ser feitas. A gente tá se aliando à Taturana Mobilização Social, por exemplo, e estamos fornecendo o filme com essa intenção, de mobilizar socialmente as pessoas e usando o filme para discussão.
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