No cinema, eles atiram primeiro e perguntam depois.
Tamanha violência, representada em histórias contadas por diretores polêmicos,
pode fomentar não apenas admiração ou repulsa no espectador, mas também novas
formas de se pensar acerca da sociedade em que vivemos.
Em seu livro Imagem-violência: etnografia de um
cinema provocador, Rose Satiko Gitirana Hikiji,
professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP,
analisa um conjunto de filmes la nçados nos anos 1990, tais como Cães de Aluguel e Pulp Fiction,
de Quentin Tarantino, Fargo, dos irmãos Coen, A estrada perdida, de David Lynch, Violência gratuita, de Michael Haneke, entre outros. Sob a ótica da
antropologia visual, Rose reflete como filmes podem ser pensados enquanto
produtos culturais que veiculam representações, recortam e organizam a
experiência social, contando histórias, tempos, lugares, sentimentos e
perspectivas que sintetizam visões de mundo.
Para a professora, a escolha do cinema como objeto de pesquisa ainda é um desafio para o campo da pesquisa antropológica. Filmes, diferente de pessoas, podem ser considerados interlocutores trabalhosos. Entretanto, a paixão pessoal da autora pelo audiovisual serviu como combustível para sua análise. “Eu adoro cinema”, conta Rose. “Quando fazia minha graduação em Ciências Sociais, nos anos 1990, descobri com a professora Sylvia Caiuby Novaes, que viria ser minha orientadora na pós-graduação, a antropologia visual. Não eram muitos os estudos sobre cinema a partir da antropologia, mas os poucos existentes, além da abordagem mais geral sobre a imagem a partir da antropologia, me atraíram para este campo de pesquisa”.
Tradicionalmente, o território da
antropologia se fundamenta no estudo dos mitos. São eles que constituem as
narrativas orais que dão base aos diversos estudos da área. Entretanto, alguns
antropólogos experimentaram a apropriação das reflexões antropológicas sobre os
mitos para pensar o cinema.
Citados em “Imagem-violência”, o americano John
Weakland e o francês Edgar Morin são dois exemplos de pensadores que
trabalharam o cinema pela luz da etnografia. Para eles e para Rose, filmes são
narrativas culturalmente construídas. “Não são relatos realistas, mas
‘dramatizações’ da realidade. O filme, como um mito, relaciona-se com a realidade
de forma dialética, estabelecendo parâmetros ao espectador”, explica a
professora.
De acordo com o próprio Morin, o cinema
nos permite projetar mil outras vidas. Podemos, a partir da ficção audiovisual,
experimentar de forma segura situações que seriam arriscadas na vida real:
paixões, aventuras e, naturalmente, cenas de violência.
Interessada em como a violência é mediada pelas
mídias, Rose cita o antropólogo Michael Taussig ao lembrar que muitos de nós
conhecemos o terror apenas pela história narrada. “Isso diz muito sobre a
importância dos meios de comunicação”, afirma. Nesse contexto, “a narrativa
pode ser eficaz contra o terror. Ela pode desestabilizar o terror, revelando
seu discurso, e operar como um contradiscurso. Isso me interessa muito”.
Riso como provocação
Filmes como Cães de Aluguel, que, conforme um dos exemplos citados
na obra, retiram a humanidade de uma categoria de indivíduos (“os tiras”) para
justificar seu extermínio violento, fizeram sua parte para fomentar a reflexão
do espectador sobre a relação maniqueísta que se estabelece em filmes
policiais. Brincando com a tradição do gênero, Tarantino conduz o espectador a
questionar quem “merece” ou não ser morto em suas produções. Muitas vezes,
provocando no público risos inesperados diante das mais horripilantes cenas de
violência.
“O
riso nas exibições de filmes que mostravam cenas de grande violência física foi
um dos fatores que mais me chamou a atenção para os filmes que analiso”, pontua
Rose. “Percebi que o riso por vezes pode ser o ‘riso nervoso’, que alivia o
pavor. Outras vezes, é a resposta esperada pelo diretor, que brinca com uma
situação supostamente séria (como quando os protagonistas de Pulp Fiction têm que lidar com os pedaços de cérebro que
ficam grudados no teto do carro)”, lembra a professora antes de apontar que “o
fato é que o riso no lugar errado é provocador. Pode até fazer pensar”.
Dentre as conclusões do trabalho, Rose destaca que,
nos filmes analisados existe uma dupla relação com a violência, “ela é tema e
forma, simultaneamente”. O resultado, em sua interpretação, é um potencial
crítico acerca de nossa relação com violência e com a imagem da violência.
Salientando, em especial, que perspectiva escolhida
não pensa o cinema como um reflexo direto da realidade, e tampouco pensa o
cinema como um estímulo ou inspiração para a violência na sociedade, a autora
destaca que analisou o cinema não como reflexo, mas como reflexão acerca do
social.
“As pessoas não se tornariam mais ou menos
violentas por ver filmes, mas alguns filmes podem provocar novas formas de
pensar sobre o assunto”, finaliza.
Sobre o livro
Lançado em janeiro pela editora Terceiro
Nome, Imagem-violência:
etnografia de um cinema provocador faz parte da coleção Antropologia Hoje, uma parceria da Terceiro Nome e do
Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) da USP para a divulgação de trabalhos,
ensaios e resultados de pesquisas etnográficas na área da antropologia voltados
à dinâmica cultural e aos processos sociais contemporâneos.
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