Cenas domésticas em preto e branco que remontam um tempo pretérito iniciam a narrativa fílmica de Eu me lembro (2005), do diretor baiano Edgard Navarro. O tom memorialista e intimista das imagens acena para a proposta da película: retratar as descobertas e dissabores de uma criança crescida e educada em um ambiente extremamente católico, machista e repressivo, de uma família branca da classe média baiana. A narrativa em off nos indica que os desenlaces da trama se dão a partir das lembranças de outrora criança Guiga.
Aquém do mote do filme, não podemos deixar de notar a preocupação do diretor em problematizar as relações raciais no Brasil, mais especificamente na Bahia durante as décadas de 50, 60 e 70, períodos no qual a narrativa é situada, no ímpeto de apontar para a permanência dos valores coloniais numa sociedade norteada pelo imaginário ocidental branco.
Antes, porém, de seguirmos as lembranças de Edgard Navarro, acho pertinente fazermos um exercício similar ao do diretor e também recordar – ainda que brevemente – como se deu a configuração das relações raciais no Brasil no que se refere aos indivíduos afro-descendentes. Não nos esqueçamos, portanto, que os primeiros negros que aqui habitaram, vieram por força da diáspora africana – resultado do processo colonial europeu. Escravizados e interditados de quaisquer direitos como seres humanos, tais indivíduos foram aqui coisificados, convertidos em “peças”. A partir da abolição da escravatura, a elaboração do negro livre, um novo elemento no quadro social brasileiro, configurou-se num desafio à elite intelectual: como inserir no texto nacional, essa parcela da população que sempre fora entendida e tratada como mercadoria e força de trabalho? Embora crioula, a elite brasileira seguia os valores e padrões eurocêntricos, desse modo, tais intelectuais no século XIX, com o intuito de compreender e apontar caminhos para a questão racial, filiaram-se aos discursos cientificistas europeus.
As teorias deterministas – positivismo, evolucionismo e social-darwinismo – adaptadas à realidade brasileira, em linhas gerais utilizaram-se de premissas ditas biológicas para atestarem a superioridade do branco e inferioridade do negro. É interessante atentar, conforme salienta Schwarcz, para o fato de que a aplicação de tais teorias no Brasil não se deu como uma tradução aleatória das doutrinas raciais européias, utilizou-se apenas o que interessava para justificar a hierarquia social e descartou-se o que não interessava, sobretudo, no que se refere aos “infortúnios da miscigenação” (SCHWARCZ, 1993:41). Os cientistas e intelectuais brasileiros, em sua maioria, entendiam que a mestiçagem seria apenas um momento transitório. Tendo em vista a hierarquia das raças, acreditava- se que o elemento branco com o passar do tempo se sobreporia, resultando no tão almejado branqueamento do povo que compunha a nação brasileira. Nesse contexto, quando buscava-se a imagem de uma país moderno e de hábitos tidos como civilizados, atribuiu-se ao negro a responsabilidade pelo atraso do país e encontrou-se no ideal de branqueamento a solução para a população negro-mestiça.
Na década de 30, com as teorias raciológicas já obsoletas, o sociólogo Gilberto Freyre retoma a discussão racial, dando um novo enfoque à mestiçagem, defendida agora como um fator positivo na formação do povo brasileiro do ponto de vista cultural (MUNANGA, 2008:75). A celebração do cruzamento das três raças – brancos, índios e negros – deu origem ao ainda vigente mito da democracia racial, que teve fundamentalmente como desdobramento a supressão das tensões e do jogo de poder presentes nas relações raciais brasileiras (CUNHA, ALVES, BACELAR, 2004). Finda essa breve rememoração sobre a tessitura do negro no Brasil, voltemos ao filme: Eu me lembro é dedicado a “… meu pai, minha mãe, Toninho e Créu, que já estão no céu”. No retrato da família de Guiga, Créu é figurada como uma empregada subserviente, sempre à postos, desempenhando suas funções com grande contentamento e obediência. A posição ocupada pela empregada doméstica ao lado dos pais na dedicatória, denota o modo carinhoso com o qual ela foi guardada nas memórias do diretor.
Todavia, as lentes pelas quais as
lembranças de Guiga são filtradas, apresentam Créu ao espectador no seu
“devido lugar”: a sua primeira projeção na tela, se dá em segundo
plano, em frente ao fogão, cozinhando. O quadro seguinte mostra toda a
família numa carroça em direção à fazenda, e mais uma vez o lugar de
Créu é destacado: em contraste com a família e sua respectiva bagagem
dentro do veículo, a empregada viaja sozinha, do lado de fora da
carroça, num patamar abaixo e o que é mais interessante, com um sorriso
estampado no rosto. Considerando o olhar acostumado a enxergar a partir
da lógica colonial eurocêntrica, poder-se-ia dizer que Créu é uma boa
pessoa, ou melhor, uma boa pessoa negra: ela sabe o seu lugar!
Embora a narrativa em off e os diálogos
ignorem os conflitos, o diretor dá vida à câmera permitindo-a flagrar
situações adversas (e cotidianas!), quando, por exemplo, da apresentação
do menino Guiga num teatro, tocando ao piano a Rapsódia Húngura no 2. A
cena se inicia com Créu no seu quarto ao som de um coro de crianças
cantando, que em seguida, sabemos, no teatro. Durante todo o concerto
alternam-se imagens do quarto de Créu e imagens de toda a família de
Guiga vendo-o tocar. É interessante perceber a preocupação do diretor em
contrastar os dois momentos dessa cena. Enquanto família e amigos estão
no teatro, Créu aparece solitária, sentada na ponta da cama ouvindo a
Rapsódia pelo rádio, acompanhando com palmas e orgulhosa da criança.
Embora a empregada compartilhe do cotidiano familiar, seu lugar social é
demarcado pela condição subalterna que lhe impede de circular por
espaços outros que não o local de trabalho, numa família que a trata com
afeto, mas a mantém longe das instâncias de poder. Ainda durante do
concerto, a câmera, num travelling, passeia pelo quarto de Créu, fazendo
aparecer as paredes mofadas, os pertences apertados em duas
prateleiras, a colcha da cama feita de retalhos de tecido, santos
católicos, algumas fotos, roupas penduradas e uma cômoda (denotando a
ausência de guarda-roupa), em absoluto contraste com o resto da casa.
Por um instante, o movimento da câmera pára e se detém num prato de ferro com o esmalte descascado e uma caneca também de ferro sobre ele, ressaltando mais uma vez o seu espaço ocupado: subalterno. A construção do personagem Créu não se dá por um ímpeto criativo aleatório do diretor, mas em correspondência à conjuntura social daquele momento – que pouco mudou nos dias atuais. Nesse sentido, a preocupação de Edgard Navarro em problematizar as relações raciais e sociais brasileiras é muito evidente. Toda a figuração da empregada doméstica na película se dá apontando para a presença de resíduos da lógica escravocrata nas relações entre brancos e negros, que sempre delegou ao negro um lugar dito de inferioridade.
A cena de Créu adormecida ao lado do rádio – seu interlocutor com o mundo lá fora – acordando assustada para atender o chamado da patroa, denota a dedicação exclusiva da empregada aos seus patrões, mas após o patrão se dar conta que Créu não serve mais para desempenhar as suas funções domésticas, ela é “cuidadosamente” mandada para um asilo – “sua última estação”: “Morreu em pleno carnaval.
O caixão dela ficou sozinho durante a noite, sem ninguém prá velar o corpo”.
E em contraste com as imagens mostradas quando do enterro de dona
Aurora, mãe de Guiga, mostra-se o corpo Créu esquecido na igreja. Créu é
uma empregada doméstica e ainda que tratada de modo afetuoso pelos
patrões, ela não deixa de entendida, sobretudo, como uma força de
trabalho e por isso mesmo, após uma vida de dedicação à família de seu
Guilherme, quando não mais pode trabalhar, é deixada/esquecida num
asilo, morrendo solitária.
Ainda assinalando para a presença de resíduos do tempo da escravidão na sociedade brasileira, a película traz a personagem Helena, uma negra, “afilhada” da casa de Guiga. O modo como ela é apresentada na narrativa – oferecendo os seios para o adolescente Zeca dar vazão aos seus impulsos sexuais (e a cena prossegue nessa tônica), nos permite entrever o seu triste desenlace. Lembrando dos tempos coloniais, quando os senhores pretensamente acreditavam deter de todo o poder sob o indivíduo escravizado, a prática sexual, entre esses e suas escravas era corriqueira – usando da violência, obviamente.
Em tempos atuais, quando os valores
machistas e patriarcais ainda organizam as relações sociais, a prática
da iniciação sexual pela empregada doméstica persiste. Nesse sentido, a
empregada desempenha uma “dupla serventia”: “prestadora de
serviços domésticos, sob o controle das patroas, [...] prestadoras
também de serviços sexuais, sob o controle dos patrões” (PATRICIO, 1999:
31); garantindo de algum modo, portanto, a manutenção dos valores
tradicionais patriarcais. Embora na projeção do filme, a cena sugira
Helena se exibindo para Zeca de modo pacífico, entendo que tal cenário
tem correspondência direta com a violência pretérita. Helena, como
tantas “afilhadas” reais presentes nos lares brasileiros, está inscrita
histórica e socialmente a partir de uma tripla negação: ela é negra,
mulher e empregada doméstica, ou, dito de outro modo, ela não é branca,
não é homem e não é patroa, totalmente à margem das configurações de
poder, que a aprisiona em figurações ditas inferiores. Além de uma
vaidade pessoal de sentir-se desejada, Helena apresenta-se a Zeca, num
ímpeto de deslocar o lugar de poder para ela, pois, nesse momento, é ela
a detentora do “saber”, no que tange às atividades sexuais.
Desse modo, ela subverte a ordem vigente. Seu castigo é ser mandada embora da casa de Guiga. Termina seus dias como prostituta. Ressalte-se que a cena do seu desfecho focaliza Helena na rua, de cabeça baixa, triste, à espera de algum cliente. O estudo de Edward Said sobre o orientalismo é salutar para a compreensão do modo como se deu a representação e construção discursiva do negro na sociedade brasileira, configurado como objeto estereotipado a partir da vigência da lógica imperialista-colonialista.
Todo um arquivo internamente estruturado é construído a partir da literatura que pertence a essas experiências [relações entre o Ocidente e o Oriente]. Disso se origina um número restrito de típicas encapsulações: a jornada, a história, a fábula, o estereótipo, o confronto polêmico. São essas as lentes através das quais o Oriente é experimentado, e elas moldam a linguagem, a percepção e a forma do encontro entre o Leste e o Oeste. [...] O Oriente em geral, portanto, vacila entre o desprezo ocidental pelo que é familiar e os seus arrepios de prazer – ou temor – pela novidade. (SAID, 2001: 68-69).
Desse modo, tal qual o Oriente foi concebido e experimentado pelo Ocidente, a tessitura do negro no Brasil também foi plasmada a partir de narrativas obedientes às estruturas discursivas dominantes que além de configurá-lo como alteridade, encapsula-os em estereótipos a partir de padrões e hierarquias arbitrárias instituídas pelo Ocidente. Por estereótipo, entendemos “um modo ambivalente de conhecimento e poder” (BHABHA, 1998: 106). A sua repetição incansável acabar por dar contornos de verdade à afirmativas parciais e figurações incompletas. No contexto pós-colonial, o uso de estereótipo se dá efetivamente como uma estratégia de controle social e legitimação de vantagens da classe enunciadora dominante. Essa configuração estereotipada acaba por gerar o que Florentina Souza (2005) chama de “vivência neurotizante”, na qual o negro no seu cotidiano “precisa estar contestando e lutando contra a imagem de si mesmo, cristalizada no imaginário da sociedade e até em seu próprio imaginário”, buscando deslocar e romper as estruturas discursivas do imaginário ocidental branco, que o colocam no lugar do Outro.
A produção áudio-visual nacional segue, de modo geral, a abordagem “orientalista” apontada por Said. O estudo sobre as representações do negro na televisão brasileira empreendido por Joel Zito Araújo (ARAÚJO, 2004) nos esclarece que a telenovela (que tem por pretensão retratar a vida cotidiana e cultural do país) destina ao indivíduo afro-descendente, com raríssimas exceções, apenas papéis relacionados aos estereótipos clássicos dos negros: serviçais, escravos, jagunços, fiéis guarda-costas, criados cômicos e assim por diante. Esta situação é também percebida pelo estudioso do cinema brasileiro, Robert Stam (STAM, 2008: 466), que ainda destaca a representação dos indivíduos afro-descendentes por via da folclorização: os filmes, majoritariamente, veiculam imagens dos negros no carnaval, em terreiros de candomblé, mas dificilmente em cenas comuns do cotidiano.
Tal conjuntura é problematizada em Eu me lembro na cena em que Guiga já adulto, na década de 70, está num barzinho, bebendo com seus amigos: “Venha cá, você vê alguma atriz negra que não seja no papel de escrava ou de empregada? Não vê, bicho, não vê! Foram séculos de escravidão e subserviência, por isso que o negro introjetou essa merda desse complexo de inferioridade, mas isso tem de acabar”. A partir da fala dessa personagem, uma jovem negra com o cabelo black power (que nesta conjuntura denota uma filiação à blacktude, movimento de afirmação da negritude) as vozes silenciadas no filme – e no país – ganham audição. Vale ressaltar que essa personagem não é ocupa um espaço subalterno como Helena ou Créu, ela é amiga de Guiga, compartilha do mesmo espaço social que ele, estando assim em um lugar de poder, mas com enunciações diferenciados em relação a Guiga.
Destaca-se ainda nesse diálogo a eficácia da retórica colonial européia, ou nas palavras da escritora Chimamanda Adichie, o perigo da história única. Como as histórias são contadas? Quem as conta? Quantas histórias são narradas? Essas perguntas nos fazem pensar em como as posições de enunciação, ou as posições de poder determinam as histórias ouvidas, ou melhor, a história que é narrada. Foucault (FOUCAULT, 2004) nos elucida que os discursos funcionam como regimes de verdade, impossíveis de serem pensados fora do âmbito da economia do poder, pois quem fala, detém o poder de controlar a representação que se faz de determinado tema, excluindo outras vozes e representações dissonantes. Assim, a empresa colonial-imperial-cristã européia justificou suas invasões a continentes outros, sob a égide de levar civilização a povos ditos bárbaros e primitivos, interditou-lhes de quaisquer direitos e, sobretudo, interditou-lhes do direito de contar suas próprias histórias. Nesse contexto, privilegiou-se o texto ocidental branco e tentou-se apagar outras tantas narrativas. Os negros foram escravizado sim, mas não subservientes. Os cinco séculos de escravidão no Brasil foram também caracterizados por revoltas, heróis insubordinados, movimentos quilombolas, assassinatos, suicídios e muitas outras estratégias de negar a condição escravizada. A partir da década de 70, o governo do Estado da Bahia, cria um programa político conjugando cultura e turismo.
Investiu-se no que seria o elemento diferenciador ou “exótico” da cultura baiana no cenário nacional: o elemento afro.
Todavia, essas histórias não são contadas. Esclarecida a questão, eu diria que foram séculos de representação subserviente, mas não de subserviência. Os personagens negros de Eu me lembro são apresentados na maior parte da narrativa mudos. O silenciamento deles nos remete ao silenciamento/invisibilidade da população negro-mestiça brasileira, promovido pelo discurso – velado – que rege as relações raciais no país. Numa das raras cenas em que Créu ganha voz (exceto quando aparece cantando ladainhas) é para demarcar o seu lugar subalterno. Quando de uma viagem à fazenda da família, a empregada junto a outros funcionários – todos negros – discutem qual a melhor maneira de escrever ao patrão sobre descobertas sexuais do irmão de Guiga, Zeca: “- bote assim, Zeca, tá com a pombinha crescida”, “ – ou senão pinta, ou pindoba assanhada”, “– podia ser, tá afetado nas parte baixa”, “– Zeca tá com o zé de mijar alterado”, “– nada disso serve, tem coisa que não se pode dizer prá seu Guilerme”, “– tindola, bingola, manjuba… eu ainda acho rolinha melhor”, “– veja se ficou bom assim: seu Guilerme, venha orgente, Zeca tá com a zoreta inchada”.Nesse quadro, os empregados, caracterizados pela obediência e lealdade ao patrão, vêem-se atrapalhados por não dominar os padrões normativos da língua. As diferentes linguagens denotam os diferentes lugares sociais ocupados e os empregados esbarram justamente no mecanismo de controle da língua, que conforme explica Foucault, determina “as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim não permitir que todo mundo tenha acesso a eles” (FOUCAULT, 2004: 36-37). Desta forma pode-se perceber que o domínio com a linguagem é mais um entrave que o diretor da película utiliza para demarcar o lugar de exclusão dos negros na sociedade. Por outro lado, no rol das personagens negras subalternas, Edgard Navarro dar vez e voz à Maria Maluca, uma personagem diferenciada das demais, pois ainda que vivendo num mundo de devaneios não se submete aos ditames patriarcais.
Maria Maluca acredita estar de casamento marcado com um famoso estadista inglês, entretanto para se casar ela não abre de ser contemplada nas suas exigências: “Ele tá querendo me levar prá morar com ele, mas o diabo é que vai, não eu. Eu já disse a ele que prá lá eu não vou, mas não vou mesmo e tem mais, eu só me caso com ele se ele largar aquele diabo daquele charuto”.
O diretor elabora Maria Maluca com uma mulher de valores à frente do seu tempo, ao mesmo que ela recusa o casamento – marca de inclusão social da mulher – ela também é porta-voz das mazelas sofridas por mulheres negras, por prostitutas, que eram utilizadas como meros objetos de prazer: “Não adianta, quem manda na minha boa sou eu. [...] Porque antigamente aqueles senhores, chefes de famía, vinha tudo prá qui, né? Eles diziam em casa que tinham um clube desses rádio amador, que ouvia BBC de Londre. Sabe qual é a BBC que eles vinham ouvir aqui? Era boca,boceta e cú!”. Todavia, o posicionamento denunciativo dessa personagem, que já traz no nome “Maluca” a marca da sua diferença, não tem validade, pois o seu lugar social, marcado pela sua enfermidade mental não é legitimado como “valor de verdade” (FOUCAULT, 2004).
As teorias pós-estruturalistas defendem que vivemos no mundo da linguagem e da representação. O universo que nos cerca, pessoas, seres ou objetos só adquirem significado por meio da representação que é dada através da linguagem. Entendida dessa forma, representação, portanto, é atribuição de significados que produzem efeitos reais e regulam nossas práticas sociais: “é por meio do significado produzido pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos” (WOODWARD, 2009: 17).
Em seu estudo empreendido na década de 80 sobre “O negro brasileiro e o cinema”, João Carlos Rodrigues (RODRIGUES, 1988) elenca doze estereótipos recorrentemente usados para representar os negros na produção cinematográfica brasileira. Embora a discussão de Rodrigues seja um importante estudo sobre as representações do afro-descendente, deve-se notar, conforme sugere Robert Stam, que “… a preocupação exaustiva com imagens, sejam estas positivas ou negativas, pode levar a uma espécie de essencialismo, já que o crítico reduz uma diversidade complexa de representações a um conjunto limitado de estereótipos” (STAM, 2008: 465). Portanto, além de identificar os estereótipos, devemos também perceber a força produtiva que reside na sua ambivalência, pois ao mesmo tempo que aprisiona uma imagem, acaba por dar visibilidade a mesma, colocando em cena as tensões que circundam o entendimento do objeto estereotipado.
Nesse sentido, ainda que a narrativa fílmica Eu me lembro encene imagens cristalizadas do negro, sempre na condição de subalterno e excluído, entendo que a utilização dos estereótipos nesse filme se dá na contramão do senso comum, ou seja, antes que querer encapsulá-los em imagens negativas, o uso das representações estereotipadas se dá como uma estratégia para explorar e colocar em debate as tensões que circundam as relações raciais no Brasil. Se num primeiro momento Edgard Navarro abusa de figurações negativas, ele reserva como desfecho para os personagens negros uma fala revisora e questionadora.
Deve-se notar também que embora o retrato tecido pelo diretor incida em décadas passadas, contemporaneamente ainda vigora tais representações. No Estado da Bahia, por exemplo, onde o filme é encenado, a produção cultural de matriz africana foi apropriada pela indústria cultural, tornando-se valor hegemônico, entretanto, devemos lembrar que aos negros ainda é negado o direito de gozar de uma cidadania plena.
Bibliografia
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade?. In: Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. SILVA, Tomaz Tadeu da (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Petrópolis: Editora vozes, 2007.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999.
OLIVEIRA, Marinyze Prates. Olhares roubados: cinema, literatura e nacionalidade. Salvador: FAPESB/Quarteto, 2004.
RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Globo: Fundação do Cinema Brasileiro – MINC, 1988.
SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU, Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
STAM, Robert. Multicultiralismo Tropical: Uma História Comparativa da Raça na Cultura e no Cinema Brasileiros. Tradução de Fernando S. Vugman. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
Publicado originalmente em: http://cadernodecinema.com.br/blog/memorias-de-afro-descendencia/#comments
Também sobre o tema, vejam o filme Negros, da Mônica Simões. É uma babel: mistura filme de arquivo + cidade + memória + imagens dos negros baianos: http://www3. tvcultura.com.br/doctv/player/ content/1669
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