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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Eu me lembro: vozes em descompasso no cenário pós-colonial


por Taís Corrêa Viscardi
     
Cenas domésticas em preto e branco que remontam um tempo pretérito iniciam a narrativa fílmica de Eu me lembro (2005), do diretor baiano Edgard Navarro. O tom memorialista e intimista das imagens acena para a proposta da película: retratar as descobertas e dissabores de uma criança crescida e educada em um ambiente extremamente católico, machista e repressivo, de uma família branca da classe média baiana. A narrativa em off nos indica que os desenlaces da trama se dão a partir das lembranças de outrora criança Guiga.

Aquém do mote do filme, não podemos deixar de notar a preocupação do diretor em problematizar as relações raciais no Brasil, mais especificamente na Bahia durante as décadas de 50, 60 e 70, períodos no qual a narrativa é situada, no ímpeto de apontar para a permanência dos valores coloniais numa sociedade norteada pelo imaginário ocidental branco.

Antes, porém, de seguirmos as lembranças de Edgard Navarro, acho pertinente fazermos um exercício similar ao do diretor e também  recordar – ainda que brevemente – como se deu a configuração das relações raciais no Brasil no que se refere aos indivíduos afro-descendentes. Não nos esqueçamos, portanto, que os primeiros negros que aqui habitaram, vieram por força da diáspora africana – resultado do processo colonial europeu. Escravizados e interditados de quaisquer direitos como seres humanos, tais indivíduos foram aqui coisificados, convertidos em “peças”.  A partir da abolição da escravatura, a elaboração do negro livre, um novo elemento no quadro social brasileiro, configurou-se num desafio à elite intelectual: como inserir no texto nacional, essa parcela da população que sempre fora entendida e tratada como mercadoria e força de trabalho? Embora crioula, a elite brasileira seguia os valores e padrões eurocêntricos, desse modo, tais intelectuais no século XIX, com o intuito de compreender e apontar caminhos para a questão racial, filiaram-se aos discursos cientificistas europeus.


As teorias deterministas – positivismo, evolucionismo e social-darwinismo – adaptadas à realidade brasileira, em linhas gerais utilizaram-se de premissas ditas biológicas para atestarem a superioridade do branco e inferioridade do negro. É interessante atentar, conforme salienta Schwarcz, para o fato de que a aplicação de tais teorias no Brasil não se deu como uma tradução aleatória das doutrinas raciais européias, utilizou-se apenas o que interessava para justificar a hierarquia social e descartou-se o que não interessava, sobretudo,  no que se refere aos “infortúnios da miscigenação” (SCHWARCZ, 1993:41).  Os cientistas e intelectuais brasileiros, em sua maioria, entendiam que a mestiçagem seria apenas um momento transitório. Tendo em vista a hierarquia das raças, acreditava- se que o elemento branco com o passar do tempo se sobreporia, resultando no tão almejado branqueamento do povo que compunha a nação brasileira.  Nesse contexto, quando buscava-se a imagem de uma país moderno e de hábitos tidos como civilizados, atribuiu-se ao negro a responsabilidade pelo atraso do país e encontrou-se no ideal de branqueamento a solução para a população negro-mestiça.

Na década de 30, com as teorias raciológicas já obsoletas, o sociólogo Gilberto Freyre retoma a discussão racial, dando um novo enfoque à mestiçagem, defendida agora como um fator positivo na formação do povo brasileiro do ponto de vista cultural (MUNANGA, 2008:75). A celebração do cruzamento das três raças – brancos, índios e negros – deu origem ao ainda vigente mito da democracia racial, que teve fundamentalmente como desdobramento a supressão das tensões e do jogo de poder presentes nas relações raciais brasileiras (CUNHA, ALVES, BACELAR, 2004). Finda essa breve rememoração sobre a tessitura do negro no Brasil, voltemos ao filme: Eu me lembro é dedicado a “… meu pai, minha mãe, Toninho e Créu, que já estão no céu”. No  retrato  da  família  de  Guiga,  Créu  é  figurada  como  uma  empregada subserviente, sempre à postos, desempenhando suas funções com grande contentamento e obediência. A posição ocupada pela empregada doméstica ao lado dos pais na dedicatória, denota o modo carinhoso com o qual ela foi guardada nas memórias do diretor.
Todavia, as lentes pelas quais as lembranças de Guiga são filtradas, apresentam Créu ao espectador no seu “devido lugar”:  a sua primeira projeção na tela, se dá em segundo plano, em frente ao fogão, cozinhando. O quadro seguinte mostra toda a família numa carroça em direção à fazenda, e mais uma vez o lugar de Créu é destacado: em contraste com a família e sua respectiva bagagem dentro do veículo, a empregada viaja sozinha, do lado de fora da carroça, num patamar abaixo e o que é mais interessante, com um sorriso estampado no rosto. Considerando o olhar acostumado a enxergar a partir da lógica colonial eurocêntrica, poder-se-ia dizer que Créu é uma boa pessoa, ou melhor, uma boa pessoa negra: ela sabe o seu lugar!
Embora a narrativa em off e os diálogos ignorem os conflitos, o diretor dá vida à câmera permitindo-a flagrar situações adversas (e cotidianas!), quando, por exemplo, da apresentação do menino Guiga num teatro, tocando ao piano a Rapsódia Húngura no 2. A cena se inicia com Créu no seu quarto ao som de um coro de crianças cantando, que em seguida, sabemos, no teatro. Durante todo o concerto alternam-se imagens do quarto de Créu e imagens de toda a família de Guiga vendo-o tocar. É interessante perceber a preocupação do diretor em contrastar os dois momentos dessa cena. Enquanto família e amigos estão no teatro, Créu aparece solitária, sentada na ponta da cama ouvindo a Rapsódia pelo rádio, acompanhando com palmas e orgulhosa da criança. Embora a empregada compartilhe do cotidiano familiar, seu lugar social é demarcado pela condição subalterna que lhe impede de circular por espaços outros que não o local de trabalho, numa família que a trata com afeto, mas a mantém longe das instâncias de poder. Ainda durante do concerto, a câmera, num travelling, passeia pelo quarto de Créu, fazendo aparecer as paredes mofadas, os pertences apertados em duas prateleiras, a colcha da cama feita de retalhos de tecido, santos católicos, algumas fotos, roupas penduradas e uma cômoda (denotando a ausência de guarda-roupa), em absoluto contraste com o resto da casa.

Por um instante, o movimento da câmera pára e se detém num prato de ferro com o esmalte descascado e uma caneca também de ferro sobre ele, ressaltando mais uma vez o seu espaço ocupado: subalterno. A construção do personagem Créu não se dá por um ímpeto criativo aleatório do diretor, mas em correspondência à conjuntura social daquele momento – que pouco mudou nos dias atuais. Nesse sentido, a preocupação de Edgard Navarro em problematizar as relações raciais e sociais brasileiras é muito evidente. Toda a figuração da empregada doméstica na película se dá apontando para a presença de resíduos da lógica escravocrata nas relações entre brancos e negros, que sempre delegou ao negro um lugar dito de inferioridade.

A cena de Créu adormecida ao lado do rádio – seu interlocutor com o mundo lá fora – acordando assustada para atender o chamado da patroa, denota a dedicação exclusiva da empregada aos seus patrões, mas após o patrão se dar conta que Créu não serve mais para desempenhar as suas funções domésticas,  ela é “cuidadosamente” mandada para um asilo – “sua última estação”:  “Morreu em pleno carnaval.
O caixão dela ficou sozinho durante a noite, sem ninguém prá velar o corpo”. E em contraste com as imagens mostradas quando do enterro de dona Aurora, mãe de Guiga, mostra-se o corpo Créu esquecido na igreja.  Créu é uma empregada doméstica e ainda que tratada de modo afetuoso pelos patrões, ela não deixa de entendida, sobretudo, como uma força de trabalho e por isso mesmo, após uma vida de dedicação à família de seu Guilherme, quando não mais pode trabalhar, é deixada/esquecida num asilo, morrendo solitária.

Ainda assinalando para a presença de resíduos do tempo da escravidão na sociedade brasileira, a película traz a personagem Helena, uma negra, “afilhada” da casa de Guiga. O modo como ela é apresentada na narrativa – oferecendo os seios para o adolescente Zeca dar vazão aos seus impulsos sexuais (e a cena prossegue nessa tônica), nos permite entrever o seu triste desenlace. Lembrando dos tempos coloniais, quando os senhores pretensamente acreditavam deter de todo o poder sob o indivíduo escravizado, a prática sexual, entre esses e suas escravas era corriqueira – usando da violência, obviamente.
Em tempos atuais, quando os valores machistas e patriarcais ainda organizam as relações sociais, a prática da iniciação sexual pela empregada doméstica persiste. Nesse sentido,  a  empregada  desempenha  uma  “dupla  serventia”:  “prestadora  de  serviços domésticos, sob o controle das patroas, [...] prestadoras também de serviços sexuais, sob o controle dos patrões” (PATRICIO, 1999: 31); garantindo de algum modo, portanto, a manutenção dos valores tradicionais patriarcais. Embora na projeção do filme, a cena sugira Helena se exibindo para Zeca de modo pacífico, entendo que tal cenário tem correspondência direta com a violência pretérita.  Helena, como tantas “afilhadas” reais presentes nos lares brasileiros, está inscrita histórica e socialmente a partir de uma tripla negação: ela é negra, mulher e empregada doméstica, ou, dito de outro modo, ela não é branca, não é homem e não é patroa, totalmente à margem das configurações de poder, que a aprisiona em figurações ditas inferiores. Além de uma vaidade pessoal de sentir-se desejada, Helena apresenta-se a Zeca, num ímpeto de deslocar o lugar de poder para ela, pois, nesse momento, é ela a detentora do “saber”, no que tange às atividades sexuais.

Desse modo, ela subverte a ordem vigente. Seu castigo é ser mandada embora da casa de Guiga. Termina seus dias como prostituta. Ressalte-se que a cena do seu desfecho focaliza Helena na rua, de cabeça baixa, triste, à espera de algum cliente. O estudo de Edward Said sobre o orientalismo é salutar para a compreensão do modo como se deu a representação e construção discursiva do negro na sociedade brasileira, configurado como objeto estereotipado a partir da vigência da lógica imperialista-colonialista.

Todo um arquivo internamente estruturado é construído a partir da literatura que pertence a essas experiências [relações entre o Ocidente e o Oriente]. Disso se origina um número restrito de típicas encapsulações: a jornada, a história, a fábula, o estereótipo, o confronto polêmico. São essas as lentes através das quais o Oriente é experimentado, e elas moldam a linguagem, a percepção e a forma do encontro entre o Leste e o Oeste. [...] O Oriente em geral, portanto, vacila entre o desprezo ocidental pelo que é familiar e os seus arrepios de prazer – ou temor – pela novidade. (SAID, 2001: 68-69).

Desse modo, tal qual o Oriente foi concebido e experimentado pelo Ocidente, a tessitura do negro no Brasil também foi plasmada a partir de narrativas obedientes às estruturas discursivas dominantes que além de configurá-lo como alteridade, encapsula-os em estereótipos a partir de padrões e hierarquias arbitrárias instituídas pelo Ocidente. Por estereótipo,  entendemos “um modo ambivalente de conhecimento e poder” (BHABHA, 1998: 106). A sua repetição incansável acabar por dar contornos de verdade à afirmativas parciais e figurações incompletas. No contexto pós-colonial, o uso de estereótipo se dá efetivamente como uma estratégia de controle social e legitimação de vantagens da classe enunciadora dominante. Essa configuração estereotipada acaba por gerar o que Florentina Souza (2005) chama de “vivência neurotizante”, na qual o negro no seu cotidiano “precisa estar contestando e lutando contra a imagem de si mesmo, cristalizada no imaginário da sociedade e até em seu próprio imaginário”, buscando deslocar e romper as estruturas discursivas do imaginário ocidental branco, que o colocam no lugar do Outro.

A produção áudio-visual nacional segue, de modo geral, a abordagem “orientalista” apontada por Said. O estudo sobre as representações do negro na televisão brasileira empreendido por Joel Zito Araújo (ARAÚJO, 2004) nos esclarece que a telenovela (que tem por pretensão retratar a vida cotidiana e cultural do país) destina ao indivíduo afro-descendente, com raríssimas exceções, apenas papéis relacionados aos estereótipos clássicos dos negros: serviçais, escravos, jagunços, fiéis guarda-costas, criados cômicos e assim por diante. Esta situação é também percebida pelo estudioso do cinema brasileiro, Robert Stam (STAM, 2008: 466), que ainda destaca a representação dos indivíduos afro-descendentes por via da folclorização: os filmes, majoritariamente, veiculam imagens dos negros no carnaval, em terreiros de candomblé, mas dificilmente em cenas comuns do cotidiano.

Tal conjuntura é problematizada em Eu me lembro na cena em que Guiga já adulto, na década de 70, está num barzinho, bebendo com seus amigos: “Venha cá, você vê alguma atriz negra que não seja no papel de escrava ou de empregada? Não vê, bicho, não vê! Foram séculos de escravidão e subserviência, por isso que o negro introjetou essa merda desse complexo de inferioridade, mas isso tem de acabar”. A partir da fala dessa personagem, uma jovem negra com o cabelo black power (que nesta conjuntura denota uma filiação à blacktude, movimento de afirmação da negritude) as vozes silenciadas no filme – e no país – ganham audição. Vale ressaltar que essa personagem não é ocupa um espaço subalterno como Helena ou Créu, ela é amiga de Guiga, compartilha do mesmo espaço social que ele, estando assim em um lugar de poder, mas com enunciações diferenciados em relação a Guiga.

Destaca-se ainda nesse diálogo a eficácia da retórica colonial européia, ou nas palavras da escritora Chimamanda Adichie, o perigo da história única. Como as histórias são contadas? Quem as conta? Quantas histórias são narradas? Essas perguntas nos fazem pensar em como as posições de enunciação, ou as posições de poder determinam as histórias ouvidas, ou melhor, a história que é narrada.  Foucault (FOUCAULT, 2004) nos elucida que os discursos funcionam como regimes de verdade, impossíveis de serem pensados fora do âmbito da economia do poder, pois quem fala, detém o poder de controlar a representação que se faz de determinado tema, excluindo outras vozes e representações dissonantes. Assim, a empresa colonial-imperial-cristã européia justificou suas invasões a continentes outros, sob a égide de levar civilização a povos ditos bárbaros e primitivos, interditou-lhes de quaisquer direitos e, sobretudo, interditou-lhes do direito de contar suas próprias histórias. Nesse contexto, privilegiou-se o texto ocidental branco e tentou-se apagar outras tantas narrativas. Os negros foram escravizado sim, mas não subservientes. Os cinco séculos de escravidão no Brasil foram também caracterizados por revoltas, heróis insubordinados, movimentos quilombolas, assassinatos, suicídios e muitas outras estratégias de negar a condição escravizada. A partir da década de 70, o governo do Estado da Bahia, cria um programa político conjugando cultura e turismo. 

Investiu-se no que seria o elemento diferenciador ou “exótico” da cultura baiana no cenário nacional: o elemento afro.

Todavia, essas histórias não são contadas. Esclarecida a questão, eu diria que foram séculos de representação subserviente, mas não de subserviência. Os personagens negros de Eu me lembro são apresentados na maior parte da narrativa mudos. O silenciamento deles nos remete ao silenciamento/invisibilidade da população negro-mestiça brasileira, promovido pelo discurso – velado – que rege as relações raciais no país.  Numa das raras cenas em que Créu ganha voz (exceto quando aparece cantando ladainhas) é para demarcar o seu lugar subalterno. Quando de uma viagem à fazenda da família, a empregada junto a outros funcionários – todos negros – discutem qual a melhor maneira de escrever ao patrão sobre descobertas sexuais do irmão de Guiga, Zeca: “- bote assim, Zeca, tá com a pombinha crescida”, “ – ou senão pinta, ou pindoba assanhada”, “– podia ser, tá afetado nas parte baixa”, “– Zeca tá com o zé de mijar alterado”, “– nada disso serve, tem coisa que não se pode dizer prá seu Guilerme”, “– tindola, bingola, manjuba… eu ainda acho rolinha melhor”, “– veja se ficou bom assim: seu Guilerme, venha orgente, Zeca tá com a zoreta inchada”.Nesse quadro, os empregados, caracterizados pela obediência e lealdade ao patrão, vêem-se atrapalhados por não dominar os padrões normativos da língua. As diferentes linguagens denotam os diferentes lugares sociais ocupados e os empregados esbarram justamente no mecanismo de controle da língua, que conforme explica Foucault,  determina  “as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número  de  regras  e  assim  não  permitir  que  todo  mundo  tenha  acesso  a  eles” (FOUCAULT, 2004: 36-37). Desta forma pode-se perceber que o domínio com a linguagem é mais um entrave que o diretor da película utiliza para demarcar o lugar de exclusão dos negros na sociedade. Por outro lado, no rol das personagens negras subalternas, Edgard Navarro dar vez e voz à Maria Maluca, uma personagem diferenciada das demais, pois ainda que vivendo num mundo de devaneios não se submete aos ditames patriarcais.

Maria Maluca acredita estar de casamento marcado com um famoso estadista inglês, entretanto para se casar ela não abre de ser contemplada nas suas exigências: “Ele tá querendo me levar prá morar com ele, mas o diabo é que vai, não eu. Eu já disse a ele que prá lá eu não vou, mas não vou mesmo e tem mais, eu só me caso com ele se ele largar aquele diabo daquele charuto”. 

O diretor elabora Maria Maluca com uma mulher de valores à frente do seu tempo, ao mesmo que ela recusa o casamento – marca de inclusão social da mulher – ela também é porta-voz das mazelas sofridas por mulheres negras, por prostitutas, que eram utilizadas como meros objetos de prazer: “Não adianta, quem manda na minha boa sou eu. [...] Porque antigamente aqueles senhores, chefes de famía, vinha tudo prá qui, né? Eles diziam em casa que tinham um clube desses rádio amador, que ouvia BBC de Londre. Sabe qual é a BBC que eles vinham ouvir aqui? Era boca,boceta e cú!”. Todavia, o  posicionamento denunciativo  dessa personagem, que já traz no nome “Maluca” a marca da sua diferença, não tem validade, pois o seu lugar social, marcado  pela  sua  enfermidade  mental  não  é  legitimado  como  “valor  de  verdade” (FOUCAULT, 2004).

As teorias pós-estruturalistas defendem que vivemos no mundo da linguagem e da representação. O universo que nos cerca, pessoas, seres ou objetos só adquirem significado por meio da representação que é dada através da linguagem. Entendida dessa forma, representação, portanto, é atribuição de significados que produzem efeitos reais e regulam nossas práticas sociais: “é por meio do significado produzido pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos” (WOODWARD, 2009: 17). 
Em seu estudo empreendido na década de 80 sobre “O negro brasileiro e o cinema”, João Carlos Rodrigues (RODRIGUES, 1988) elenca doze estereótipos recorrentemente usados para representar os negros na produção cinematográfica brasileira. Embora a discussão de Rodrigues seja um importante estudo sobre as representações do afro-descendente, deve-se notar, conforme sugere Robert Stam,   que “… a preocupação exaustiva com imagens, sejam estas positivas ou negativas, pode levar a uma espécie de essencialismo, já que o crítico reduz uma diversidade complexa de representações a um conjunto limitado de estereótipos” (STAM, 2008: 465).  Portanto, além de identificar os estereótipos, devemos também perceber a força produtiva que reside na sua ambivalência, pois ao mesmo tempo que aprisiona uma imagem, acaba por dar visibilidade a mesma, colocando em cena as tensões que circundam o entendimento do objeto estereotipado.

Nesse sentido, ainda que a narrativa  fílmica Eu me lembro encene imagens cristalizadas do negro, sempre na condição de subalterno e excluído, entendo que a utilização dos estereótipos  nesse filme se dá na contramão do senso comum, ou seja, antes que querer encapsulá-los em imagens negativas, o uso das representações estereotipadas se dá como uma estratégia para explorar e colocar em debate as tensões que circundam as relações raciais no Brasil. Se num primeiro momento Edgard Navarro abusa de figurações negativas, ele reserva como desfecho para os personagens negros uma fala revisora e questionadora. 

Deve-se notar também que embora o retrato tecido pelo diretor incida em décadas passadas, contemporaneamente ainda vigora tais representações. No Estado da Bahia, por exemplo, onde o filme é encenado, a produção cultural de matriz africana foi apropriada pela indústria cultural, tornando-se valor hegemônico, entretanto, devemos lembrar que aos negros ainda é negado o direito de gozar de uma cidadania plena.
 
Bibliografia
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade?. In: Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. SILVA, Tomaz Tadeu da (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Petrópolis: Editora vozes, 2007.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999.
OLIVEIRA, Marinyze Prates. Olhares roubados: cinema, literatura e nacionalidade. Salvador: FAPESB/Quarteto, 2004.
RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Globo: Fundação do Cinema Brasileiro – MINC, 1988.
SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU, Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
STAM, Robert. Multicultiralismo Tropical: Uma História Comparativa da Raça na Cultura e no Cinema Brasileiros. Tradução de Fernando S. Vugman. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. 
 Publicado originalmente em: http://cadernodecinema.com.br/blog/memorias-de-afro-descendencia/#comments
Também sobre o tema, vejam o filme Negros, da Mônica Simões. É uma babel: mistura filme de arquivo + cidade + memória + imagens dos negros baianos: http://www3.tvcultura.com.br/doctv/player/content/1669

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terça-feira, 25 de dezembro de 2012

III Encontro Anual da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento

O III Encontro Anual da AIM terá lugar na Universidade de Coimbra, nos dias 9, 10 e 11 de maio de 2013, numa organização conjunta da AIM e do CEIS20 - Centro Estudos Interdisciplinares do Século XX.

Entre os conferencistas convidados, cuja presença no III Encontro Anual da AIM já está confirmada, encontram-se: Tito Cardoso e Cunha, da Universidade da Beira Interior, autor de Argumentação e Crítica (2004); Laura Mulvey, do Birkbeck College (Londres), autora de Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975) e de Death 24 X a Second (2005); e Ismail Xavier, da Universidade de São Paulo, autor de O Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência (1977) e Alegorias do subdesenvolvimento - cinema novo, tropicalismo, cinema marginal (1993).

A AIM convida-o a submeter propostas de contribuição, em português, inglês ou castelhano, que não excedam os 1500 caracteres (incluindo espaços), nas seguintes áreas (que poderão ser alargadas a outras): cinema, televisão, vídeo, Internet, media digitais, literacia dos media, cultura visual

A assistência é livre, podendo as propostas ser submetidas por membros da AIM e por não membros. Para mais informações sobre as condições de participação, formas de contribuição e submissão de propostas, consulte o Call for Papers online, aqui. Depois do Encontro, serão publicadas atas em formato eletrónico.

O prazo para submissão de propostas termina em 31 de dezembro de 2012. Em anexo, segue o Call for Papers em formato pdf. Mais informações e formas de submissão em http://aim.org.pt/encontro/.

Organização:
AIM - Associação de Investigadores da Imagem em Movimento
CEIS20 - Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra

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Dear member,

The University of Coimbra will host the III AIM Annual Meeting in Lisbon, on May 9th, 10th and
11th, in a joint organization of AIM and CEIS20 - Centre for 20th Century Interdisciplinary Studies.

Among the guest speakers who have already confirmed their participation are Tito Cardoso e Cunha, from Universidade da Beira Interior, author of Argumentação e Crítica (2004); Laura Mulvey, from the Birkbeck College (United Kingdom), author of Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975) and Death 24 X a Second (2005); and Ismail Xavier, from Universidade de São Paulo, author of O Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência (1977) and Alegorias do subdesenvolvimento - cinema novo, tropicalismo, cinema marginal (1993).

We invite you to submit proposals for either papers or panels, in either Portuguese, Spanish or English, not exceeding 1500 characters (including spaces) in the fields listed below. The list is indicative, and it may include other areas: film, television, video, Internet, digital media, media literacy, visual culture.

Attendance is free, and it is possible to submit proposals as AIM member or as non-member.

Further information on the terms of participation, forms of contribution and submission of proposals can be found in the online Call for Papers, available here. Conference proceedings will be published electronically after the meeting.

The deadline for submission of proposals is December 31st, 2012. Please check also, in attachment, the Call for Papers in pdf format,

Organizers
AIM – Portuguese Association of Researchers of the Moving Image
CEIS20 - Centre for 20th Century Interdisciplinary Studies of the University of Coimbra

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Tem Romance sem Drama?

Capuzzo, Heitor. Lágrimas de Luz, o drama romântico no cinema, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999, 221 pp.

Mirela Berger 
 
Doutora em Antropologia Social - USP 
Professora de Antropologia
- UNICAMP

Disse Mássimo Canevacci: "o cinema possui um enigma mítico em seu poder de atração"(1984). Estar numa sala de cinema escura é estar imerso em um reino que mistura realidade e fantasia, dando asas aos nossos sentimentos e sonhos. Se o filme em questão for um drama romântico, talvez se potencializem ainda mais as possibilidades de catarse e identificação com as tramas. Afinal, qual de nós, simples mortais, não tem um amor romântico (ou, pelo menos, uma idéia do que seja isso) para nos fazer entrar em comunhão com os dramas vividos pelos personagens?
O livro de Heitor Capuzzo, Lágrimas de luz - o drama romântico no cinema, pretende analisar as estratégias narrativas do melodrama desde Intolerância, de David Griffith (1916) até Titanic, de James Cameron (1997), e perceber porque este gênero cinematográfico é capaz de conquistar grandes platéias e suscitar sofridas lágrimas. O cinema vem sendo alvo de atenção de Capuzzo há algum tempo. Por dez anos ele atuou como crítico de cinema e dirigiu curtas-metragens. Hoje atua como professor titular do Departamento de Fotografia e Cinema da Escola de Belas Artes/Universidade Federal de Minas Gerais e coordena o midia@rte. É autor, entre outros, de Alfred Hitchcock: o cinema em construção e de O cinema além da imaginação (ambos publicados pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida, em Vitória, respectivamente, em 1993 e 1990). Para os amantes do cinema e para a antropologia visual, trata-se de um livro fundamental. Recentemente, platéias de várias partes do mundo se emocionaram, e como disse a crítica, mesmo os corações mais duros sucumbiram diante do filme dinamarquês Dançando no escuro (Dancer in the Dark), de Lars Von Trier. Embora não analisado por Capuzzo, a leitura do livro lança luz sobre os mecanismos narrativos e estruturais que tanto fascinaram o público no filme de Trier. Do ponto de vista da antropologia visual, o livro é um excelente exercício não somente de análises fílmicas, mas também de dissecamento das estruturas narrativas de um gênero caro ao cinema, o drama romântico.

Cabe-nos então perguntar: o que caracteriza o drama romântico? Quais as suas estruturas?

Capuzzo começa a responder esta questão logo nas páginas iniciais do livro, quando analisa o episódio "A mãe e a lei", de Intolerância, filme de Griffith. Segundo ele, o plano-detalhe das mãos tensas da mulher aguardando o veredicto do marido, que desvia o espectador de seu rosto e o leva a construir por si só a antecipação do veredicto (que será negativo ao marido), faz que ele participe da construção narrativa. Ou seja, o recurso de utilizar estruturas em contraponto, articulando internamente os planos e a busca constante de um diálogo entre o público e a trama seriam algumas das estratégias narrativas do melodrama. A essas, Capuzzo acrescenta o uso de detalhes, entre eles os adereços (no caso de Griffith, o enxoval de casamento de dois jovens), que permeiam toda a trama como expressivos recursos dramáticos para acentuar conflitos individuais, sociais ou, mesmo, acontecimentos históricos. Nos planos-detalhes, Capuzzo vê grande parte do exercício de concentração dramática e de busca da empatia do público. Outro recurso muito utilizado é o embate entre sociedade e concretização de projetos individuais, bem como a construção dos personagens principais como representantes de valores ideais e, por isso mesmo, isolados de alguma maneira da sociedade mais ampla. Estas estratégias levam à identificação do público com os personagens e com as tramas.

Além dessas características gerais do universo do melodrama, Capuzzo vai apontando também as estratégias próprias de cada momento histórico, desde o cinema mudo, passando pelo cinema monumental de Cecil B. De Mille nos anos 20, pelos cineastas estrangeiros tais como Victor Sjöstrom, de O vento, e Friedrich Murnau, de Tabu - A story of south Seas, pelo advento do som, do uso da cor, do cinema dos anos 40, até chegar aos anos 90. O trabalho de Capuzzo é tão rico, tanto na extensão do período abordado, quanto na quantidade de filmes analisados, além da descrição densa à la Geertz das cenas, que o trabalho de resenhar o livro torna-se difícil, obrigando-nos a recortes pesarosos. Assim, para evidenciar o modo como Capuzzo analisa os filmes e suas estratégias, recortaremos algumas passagens, tais como o período entre os anos 20 e 40 e, do mesmo modo que Capuzzo, terminaremos com as passagens referentes ao filme Titanic.

Capuzzo afirma que o período do cinema mudo e de seu sucesso comercial no cinema industrial americano deve muito a Cecil B. De Mille, cuja principal característica era a momumentalidade, criada a partir do uso de trucagens e efeitos especiais. Segundo ele, a diferença entre De Mille e Griffith é que De Mille arrisca dentro de possibilidades seguras tais como o impacto fácil, os efeitos sensacionalistas, o excesso de estímulo e o exagero de figurantes e adereços, gerando um cinema pouco sutil, mas que numa realidade industrial tornou-se um modelo de sucesso a ser alcançado e que Hollywood não cessará de utilizar, como veremos depois em Titanic, já nos anos 90. O que interessou a De Mille foram os efeitos especiais, que procuram o espetacular, numa encenação marcada pela teatralidade, apostando no impacto que eles causariam no espectador. Os contrapontos são amplamente utilizados, bem como a particularização de conflitos históricos em alguns personagens, construindo uma síntese dramática de grande apelo sobre o espectador.

Nos anos 20 o cinema mudo atingirá sua sedimentação, principalmente com a chegada de cineastas estrangeiros à Hollywood. O público já estará alfabetizado na linguagem das imagens em movimento e permitirá a busca por articulações narrativas mais complexas, que permitam inclusive o abandono dos letreiros. Será o caso de Victor Sjöstrom, de O vento, que se concentrará na interiorização dos conflitos para criar a atmosfera dramática. O filme narra a fábula de uma jovem filha do Sul que se desloca até o deserto do Oeste para ir morar com um primo casado. Ventos castigam a região cobrindo todo o vilarejo com areia. A jovem não é aceita pela esposa do primo que a expulsa de casa e a força a desposar um rude vaqueiro. Sozinha numa cabana ela enfrenta várias dificuldades, que vão desde o clima até uma tentativa de estupro que a leva a cometer um homicídio. Após essas intempéries, a jovem descobre-se mulher adulta, enfrenta a vida e vive feliz com o seu marido.

Capuzzo mostra como no filme são estabelecidos dois níveis: o factual, pragmático, em que os personagens demonstram um comportamento direto, sem ambigüidades; e uma onírica subjetividade, na qual elementos concretos articulam-se para revelar o universo interior dos personagens centrais. Serão criados paralelismos entre os espaços internos e externos. Em vez de buscar efeitos especiais, Sjöstrom procura a nuança e a sutileza em um filme que segundo Capuzzo é duro, árduo e cruel, assim como o cenário em que se passa a trama. Desse modo, como Griffith, Sjöstrom utiliza-se de detalhes que permeiam toda a trama e, no caso, a areia surgirá como ligação entre vários contrapontos. Ela concentrará as atenções do público na construção intimista da personagem central, utilizando, metaforicamente, as ações catastróficas da natureza para acentuar a sensação de que a personagem central é "uma estranha no ninho", levando o público a rememorar situações de desprezo e abandono e, assim, se identificar com o drama da personagem.

Com o advento do som, novas estratégias narrativas vão surgir. O diálogo cinematográfico ganhará destaque. Capuzzo comenta que seqüências antológicas do cinema mudo não resistiriam a uma sonorização, tornando impensável dublar os filmes mudos. Trata-se não apenas de substituir letreiros por diálogos, mas sim de repensar estruturas narrativas. Será preciso tempo para que essa nova linguagem amadureça. Tanto foi assim que Capuzzo comenta que houve um abismo entre Frankenstein (EUA, 1931, de James Whale) e Do mundo nada se leva (You can't take it with you - EUA, 1938, de Frank Capra). O primeiro utilizou-se do som para criar o ritmo de várias passagens e as imagens entraram apenas para ilustrar os diálogos. Já com o segundo, ocorre um equilíbrio entre imagem e som. Capra percebeu que o som deveria se adequar à mesma estrutura de contrapontos que a imagem já havia articulado anteriormente.

Outro ponto importante que Capuzzo salienta é que "a produção do cinema industrial organizou-se a partir de uma estratégica classificação em gêneros, ou seja, modalidades dramáticas que permitem o estabelecimento das principais características comuns de cada ciclo de filmes" (: 71). Segundo ele, o cinema industrial optou por uma dramaturgia que estabeleceu no conflito a base de sua articulação e, para tal, direcionou o olhar do espectador, insistiu no recorte da imagem, acrescentou o som em contraponto e articulou essa imagem sonorizada com outras imagens, procurando uma empatia imediata com o grande público.

Um aspecto curioso da obra de Capuzzo é que, embora desde o início do livro ele procure desvendar as estratégias narrativas do drama romântico, apenas na página 71 ele dará uma definição desse gênero e iniciará uma sistematização das características do mesmo. Talvez ele o faça dessa maneira por considerar que, embora as estruturas do drama romântico já estejam presentes desde o início das produções cinematográficas, será apenas por volta de 1935 que as características deste ciclo de produção ficarão mais evidentes. Outro ponto importante é que Capuzzo não diferencia claramente o drama romântico do melodrama, fazendo uso destas duas expressões como se elas fossem sempre a mesma coisa: Capuzzo entende por drama romântico o ciclo de produções cujo tema é desenvolvido a partir de um par amoroso central que irá pontuar as várias peripécias e afirma que neste gênero as estratégias narrativas são facilmente identificáveis com o universo do melodrama. Entre essas características, Capuzzo salienta as reiterações temáticas, temporais e espaciais.

Entre as temáticas estão os erros de informação, a "lua-de-mel" no meio da narrativa, a gravidez inesperada, a separação entre pais e filhos, a experiência da morte, a utilização de cartas, os conflitos entre o par romântico e o meio social, o tratamento de exceção dado ao par romântico.

As temporais incluem o tratamento de urgência do amor recém-descoberto, o imediatismo na formação do casal, a abrupta reação externa ao par central, a súbita despedida de um dos amantes.

Nas espaciais temos a proposta de níveis diferenciados para os amantes e os demais personagens, através de primeiros planos com a utilização do fundo em contraponto, o claro e o escuro, o alto e o baixo, o interior e o exterior, geralmente sugerindo uma subjetividade e uma objetividade.

Dessa forma, são articuladas reiterações como a narrativa em dois blocos, permitindo uma circularidade ou um caráter cíclico, o uso de flashback para articular passado e presente, a narração em off, comentários musicais enfáticos, mutação do tempo e do espaço em simultaneidade, devido ao constante movimento da narrativa, criando uma instabilidade no par central.

Capuzzo salienta que o drama romântico contém em si uma certa urgência (o amor surge de maneira repentina, os amantes são apresentados logo no início do filme e têm pressa, a declaração de amor tem que ocorrer rapidamente, etc). Ele trabalha situações em seus extremos e, por isso, é frágil e sublime. As coincidências, muito presentes no drama romântico, são estratégias narrativas que sugerem ações divinas (como não lembrar aqui de Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser: "Para que um amor seja inesquecível, é preciso que os acasos se juntem desde o primeiro instante, como os passarinhos sobre os ombros de São Francisco de Assis".

Para terminarmos o passeio por esse maravilhoso livro de Capuzzo, vamos ver como ele analisa dois filmes que, segundo ele próprio, são emblemáticos do gênero descrito acima. São eles A Ponte de Waterloo (Warterloo Bridge - EUA, 1940, Mervyn LeRoy) e Titanic (EUA, 1997, James Cameron).

O primeiro conta a história de uma bailarina que se apaixona por um jovem capitão inglês, durante o início da Primeira Guerra Mundial, em Londres. Essa súbita paixão resulta numa tentativa de casamento que é truncada pela iminência da guerra e o imediato recrutamento do capitão Roy para a frente de batalha. A estrutura narrativa possui uma circularidade que é marcada pela repetição dos acontecimentos e que permite ordenar as articulações necessárias para que o tempo e o espaço possam simultaneamente contrapor o particular e o geral, através da subjetividade do casal e dos acontecimentos marcantes que os rodeiam de forma reiterada. A apresentação dos amantes acontece logo no início do filme, bem como o detalhamento dos possíveis elementos que permitirão o encontro mágico. No prólogo já estão apresentadas algumas informações que permitem ao espectador deduzir o destino final.

O segundo conta a história do naufrágio do transatlântico Titanic ocorrido em 1912, alternando fatos documentais com uma narrativa ficcional, envolvendo um jovem casal apaixonado e os impasses sociais que os separam. Rose e Jack, os protagonistas, são de níveis sociais opostos e ocupam diferentes níveis espaciais (ela na primeira classe, na parte mais alta do navio e ele na terceira, no porão). Começará entre os dois uma relação diferenciada, que leva o público à cumplicidade. A "lua-de-mel" no meio do filme parece apontar para um destino trágico.

Cameron trabalha o roteiro em dois níveis temporais, fazendo uso de flashback. No presente, um grupo pretende encontrar tesouros do Titanic, em especial uma jóia em formato de coração cuja existência eles conhecem por causa de um desenho de uma jovem usando-a. Quando esses fatos são transmitidos pela televisão, uma senhora idosa, que percebemos ser Rose, se reconhece no desenho e vai ao encontro da expedição em alto-mar. Trata-se da "ressurreição" de Rose. Tem início uma viagem na memória que alternará passado e presente. Rose dialogará imaginariamente com Jack. Por fim, a jóia será devolvida ao mar, numa metáfora da morte de Rose e da entrega de seu coração a Jack. Será usado o constante recurso de contrapor alto (o convés, o céu estrelado) e baixo (os porões, o fundo do mar), assim como a tendência de isolamento do par romântico.

O impacto visual e dramático do filme é incontestável. Nesse sentido, Capuzzo afirma que aliado aos aspectos dramáticos, encontra-se na encenação de Cameron um esplendor visual até então inédito na história do cinema industrial. Os recursos digitais permitiram pela primeira vez que o naufrágio do Titanic se concretizasse, virtualmente, nas telas, rivalizando em impacto com a trama desenvolvida. O que poderia ser conflitante, harmonizou-se, inusitadamente. O grande espetáculo catastrófico torna-se contraponto dramático à fragilidade do jovem casal. (: 216)

Capuzzo termina afirmando que é possível perceber um grande ponto de contato entre a produção de Camerom e E o vento levou (Gone with the Wind, EUA,1939, de Victor Fleming): o diálogo entre a grandiosidade da encenação e a particularização dos conflitos íntimos de seus protagonistas. Ambos apontaram para uma nova visualidade para o cinema industrial, conquistando o público e gerando estrondosas bilheterias.

Com essa comparação, Capuzzo encerra o livro cometendo o único deslize desta obra tão interessante para a antropologia visual e para os amantes do cinema. Trata-se do final abrupto, que além de introduzir uma comparação não esperada1, também não reforça (como foi feito em cada um dos filmes anteriores) os elementos cruciais que caracterizam os dois últimos filmes como dramas românticos. É claro que a estrutura é perceptível ao leitor, mas se o autor declara Titanic como emblemático do gênero, talvez não fosse demais reforçar essa associação.

Em todo caso, Capuzzo deve ser elogiado pelo árduo e extenso trabalho analítico que tão habilmente teceu as tramas do drama romântico, desvendando as estratégias narrativas que nos fazem chorar "lágrimas de luz" e, novamente, e quiçá sempre, nos enredam em sua magia.

Notas
1 Ele diz que analisará A Ponte de Waterloo e Titanic, mas, logo em seguida, em vez de compará-los, deixa de lado o primeiro para introduzir em seu lugar E o vento levou.

Bibliografia
CANEVACCI, M. 1984 Antropologia do cinema, São Paulo, Brasiliense.
In: Rev. Antropol. vol.44 no.2 São Paulo  2001
  +iNFOS: www.mirelaberger.com.br