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domingo, 29 de abril de 2012

"A saliva é o suor das palavras não ditas"

para intelectual de Praia

O BEIJO CINEMATOGRÁFICO

Por Rodrigo Gerace*
Breve panorama do beijo na sétima arte. Desejo, pacto, amizade, romantismo, sublimação sexual, metáfora política. Os sentidos do beijo em diferentes filmes e contextos históricos. Dos beijos silenciosos aos beijos proibidos, do glamour hollywoodiano ao beijo maldito do cinema marginal, do romantismo clássico à violência contemporânea.



“Até parece beijo de cinema”. Quando ouvimos essa expressão, tudo indica que há algo de extraordinário neste beijo, diferente daquele cotidiano, dado fora das telas. Como o cinema estiliza a vida, a narrativa fílmica intensifica o beijo, tornando-o mais fantasmático, distante da realidade. Com ele, o mundo dos amantes se funde, o tempo pára, a fantasia aporta, os fetiches surgem. “O beijo cinematográfico é o beijo que faz os sinos tocarem, a sinfonia de fundo atingir seu clímax. Esse beijo prova que a paixão, que apenas se supunha, realmente existe, que o amor que o casal sentia era mesmo real” – salienta Luiz Nazario, escritor e professor de história do cinema da UFMG.

O beijo carrega consigo uma “confissão de verdade”, uma visibilidade indisfarçável. Pois até mesmo um beijo fake ou técnico, como dizem os atores, traz à cena certo realismo associado à “noção de ritualidade, de estetização da cena, para quem experimenta ou testemunha a situação”, pontua Mauro Pommer, da UFSC. Nesse sentido é que o beijo potencializa não apenas o voyeurismo, mas também a cumplicidade do espectador diante das intimidades alheias, ampliadas na tela grande da sala de cinema.

O close up do beijo não aumenta apenas seu tamanho, como também permite acesso a detalhes íntimos da cena, entregando unicamente ao espectador informações emotivas dos personagens, como tensão, excitação, medo, paranóia, repulsa. Uma pequena mordida no lábio ou um beijo tenso, com pálpebra arregalada, como a de Nicole Kidman em De olhos bem fechados (1999), de Kubrick, dá pistas de que há algo disfuncional naquele casamento, cujo marido, mais tarde, se entregará, sem sucesso - a orgias secretas.

Desde o primeiro cinema, convencionou-se que o tocar entre lábios simboliza um momento romântico de prazer, de amizade, de clímax, como no happy end de alguns melodramas, onde “o beijo, mais que ato de erotismo, passou a representar a noção de pacto dos amantes – aquilo que os une entre si, e os separa do restante das pessoas”, diz Pommer. No cinema clássico, apesar do final feliz, comenta Nazario, “o casal não se formava imediatamente. Inicialmente, há apenas uma atração irresistível. Pouco a pouco essa atração se transforma em amor, mas esse amor não se consuma senão no beijo final. Os personagens são colocados diante dos maiores obstáculos, mal-entendidos, aventuras, horrores, de modo que parece a todos que a coisa mais difícil do mundo é um homem conseguir beijar uma mulher. Talvez para muita gente isso seja uma realidade, mas o interessante no cinema clássico é que esses homens e mulheres que tentavam se beijar – e que só o conseguiam depois de dias, meses, anos, de tentativas fracassadas que duravam o filme inteiro –, eram pessoas adultas, vividas, maduras. Há uma virgindade anacrônica nos heróis adultos dos velhos filmes de Hollywood que os torna fascinantes”.

Assim, o sentido do beijo cinematográfico não se esgota no próprio ato, pois traz simbolismos cambiáveis com o status tecnológico, ideológico e sexual de cada época ou mesmo de cada filme. Para Pommer, a imagem isolada de um beijo tende a se esvaziar se não estiver contextualizada. “O que efetivamente conta em termos de uma atuação da cena sobre a sensibilidade do espectador são as circunstâncias cercando o evento do beijo. A erotização da cena é, portanto, um fenômeno sempre relativo. Pouca coisa pode às vezes significar bastante”. Pois mesmo a ausência ou o adiamento do beijo pode insinuar um beijo imaginário que fica reiterando na mente do público que espera pelo beijo final nos melodramas, pelo beijo- mordida nos filmes de vampiro ou pelo beijo excitante nos filmes eróticos.

OS PRIMEIROS BEIJOS

The Kiss (1896), curta-metragem de William Heise e distribuído por Thomas Edison, é considerado como o primeiro beijo exibido ao público. Ele mostra um casal de meia-idade, os atores John Rice e May Irwin, que se beijam timidamente, mas com certo prazer no semblante. O ato mostrou-se bem ousado para a época puritana: primeiro pelo tabu do beijo, depois pelo posicionamento incomum da câmera que, em close, capturava aquele gesto íntimo. Até então, a tradição fílmica orientava que a câmera registrasse, como no teatro, todo o corpo dos atores, em plano aberto. A cena, isolada de seu contexto dramático (foi retirada da peça The Widow Jones) e pelo enquadramento fechado, tornou-se obscena ao público, aquele mesmo que aplaudiu os atores na cena teatral. Imerso em um “cinema de atrações”, o curta codificou um imaginário exibicionista: o encontro dos lábios era como um flagra sexual proposital.

O filme foi denunciado como pornográfico por membros da igreja católica e considerado indecente por alguns críticos, como Herbert Stone, que, num editorial de junho de 1896, em Chicago, clamou pela polícia, alegando que a obra era de extremo mau gosto, repugnante. Dizia ainda que “nenhum dos intérpretes era particularmente atraente... No tamanho real, o beijo já era tosco, mas nada comparado ao efeito do ato aumentado em proporções gigantescas e repetido três vezes consecutivas. Todo o charme da Miss Irwin desapareceu, transformando sua arte em algo indecente e de uma vulgaridade prodigiosa... Fatos assim demandam intervenção da polícia”. Contudo, conforme comentou Nazario, “The Kiss foi apenas um susto passageiro, como o trem dos Irmãos Lumière ‘atropelando’ os espectadores das primeiras sessões do cinema. Quatro anos depois, Edison fez um remake de The Kiss com um casal de atores mais jovens, bonitos e esbeltos, e este beijo de 1900, até mais longo e erótico que o primeiro, não causou nenhum escândalo”.

Outro filme, produzido no final do século XIX, retificou o beijo como algo íntimo e privado. The Kiss in the tunnel (1899), de George Albert Smith, revelou beijos audaciosos dentro do vagão-leito de um trem que adentrava em um escuro túnel. Hoje, a série de selinhos em ambos os curtas parece insossa, mas, na época, causou tanto frisson no público que John Rice chegou a oferecer aulas e demonstrações de beijos nos vaudevilles.

Neste primeiro cinema, as cenas de beijo davam pistas para se reconhecer e desejar os corpos em sua intimidade exposta na tela. Ao mesmo tempo em que a câmera estruturava sua linguagem própria numa narrativa ficcional ilusória, ela também descortinava a vida, mostrando tudo o que existia e ainda tudo o que não existia e não era revelado ao público: nudez, beijos, sexo. Por sinal, a ambição de tudo exibir será a característica mais marcante dos stag films, os filmes pornográficos mudos.

No início do século XX os beijos passaram a ser menos ingênuos, evocando erotismo e sedução. Theda Bara, a vamp do cinema mudo, instigava seus parceiros exclamando: “Kiss me, my fool!”, levando-os à sedução fatal. Cineastas renomados como Cecil B. De Mille, Erich Von Stroheim e David W. Griffith projetaram beijos em imagens ousadas. Em Griffith, os beijos na boca, inclusive entre pessoas do mesmo sexo, eram dados como prova de amizade e de amor puro. Chaplin mostrava, em 1916, um atrapalhado beijo gay em Behind The Screen.

Algumas produções traziam tantos beijos que chegaram a ser cronometrados. No longa de Alan Crosland, Don Juan (1926), o ator John Barrymore beijou mais de 127 vezes os lábios de Mary Astor e Estelle Taylor, isso sem contar as “bitocas” nas demais atrizes, totalizando 191 beijos e um beijo a cada 53 segundos. Outros beijos tornaram-se marcantes pela intensidade: o beijo entre John Barrymore e Dolores Costello no final de A Fera do Mar (1925), de Millard Webb, fez a atriz desmaiar, saturada após quatro longos takes repetidos do beijo. Houve também o encontro fatal entre Greta Garbo e John Gilbert em A carne e o diabo (1927), de Clarence Brown, que materializou o primeiro beijo na horizontal, com o casal deitado. Em Aurora (1927), de Murnau, o beijo apaixonado dos amantes os enleva ao atravessarem a rua, sem olhar para os lados, fazendo o trânsito parar num caos de veículos em torno deles. O drama Asas (1927), de William Wellman, mostrava o envolvimento trágico entre os amigos Jack Powell e David Armstrong, pilotos durante a Primeira Guerra Mundial. No clímax, na ocasião do ferimento de um deles, dizem: “Você sabe que não há nada no mundo tão significante pra mim quanto a sua amizade”. O outro: “Eu sempre soube disso. Todo o tempo...” E selam a confissão com um beijo na boca. A ambigüidade sexual aparecia nas personagens de Marlene Dietrich em Marrocos (1930), de Sternberg, e Greta Garbo em Rainha Cristina (1933), de Mamoulian, e O Véu Pintado (1934), de Boleslawski – filmes nos quais as duas maiores divas do cinema beijavam livremente suas admiradoras.

BEIJOS PROIBIDOS

Por conta do erotismo explícito, nos anos de 1920-30, Hollywood era considerada pela opinião pública como a “cidade do pecado”, não apenas pelas tramas sexualizadas, mas também pelos bastidores e wild parties que envolviam escândalos entre as celebridades. Desde então, grupos conservadores clamaram por “decência no cinema”, levando ao estabelecimento do Código de Produção (ou Código Hays), que passou a controlar de 1934 a 1968, dentro dos estúdios, as imagens do obsceno. Cenas de conteúdo sexual e de impacto foram proibidas (sexo, crime, parto, aborto, violência, suicídio, prostituição, contrabando, violação da lei, subversão da família e da igreja, etc). Acordos foram firmados com igrejas de diversos credos, todas entusiasmadas com a repressão ao cinema.

O sexo assumiu então a forma perversa do tabu. Como toda censura que se faz por meios negativos, ela se revelou ambígua: o cinema sexualizou-se ainda mais, só que por meios simbólicos, gerando todo um imaginário romântico, de sublimação sexual. Era praticamente uma autocensura que começava desde o desenvolvimento dos roteiros até a filmagem das cenas. Beijos “selinhos” estavam liberados, desde que limitados a 25 segundos. Beijos longos e apaixonados eram vetados. Beijo de língua nem pensar. “O beijo na boca de língua é proibido. Não se deve mostrar beijos, abraços demasiados apaixonados, poses e gestos sugestivos. Cenas de paixão não devem ser introduzidas se não forem absolutamente essenciais à intriga. A paixão deverá ser tratada de forma a não estimular as emoções mais básicas. Nunca se deve mostrá-las de maneira explícita” – dizia o Código.

Vários cineastas souberam driblar a censura, projetando beijos que insinuavam outros sentidos: um beijo no final da trama era mais que um happy end, às vezes selava um pacto político ou aludia a um coito sexual, cuja visibilidade era proibida. Até mesmo uma cena sem beijos tornava-se marcante, como a de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman se despedindo em Casablanca (1942), de Michael Curtiz, que entrega a fantasia do beijo à imaginação do espectador. Assim, ao mesmo tempo em que as restrições do código reprimiam a explicitação do desejo, estimulavam ainda mais a imaginação erótica. Como no beijo roubado em E o Vento Levou (1939); no beijo “excessivo” de 3 minutos e 5 segundos em You’re in the Army now (1940); no beijo gigantesco entre Elizabeth Taylor e Montgomery Clift em Um Lugar ao Sol (1951); ou no beijo molhado em A um passo da eternidade (1953), em que Deborah Kerr, nos braços de Burt Lancaster, rolava seminua na praia, em um “orgasmo” constante, estimulado pelo vai-e-vem das ondas.


A genialidade de Alfred Hitchcock soube contornar com maestria as limitações do Código, criando uma gramática de sublimação do sexo. Para Pommer, “a impossibilidade de representação visual do ato sexual, ou mesmo (de) cenas de beijos apaixonados, levou a uma erotização do conteúdo dos diálogos, trabalhando com subentendidos”, como no “célebre plano-seqüência de Interlúdio (1946), onde Cary Grant segue beijando Ingrid Bergman da sacada do apartamento até a sala, enquanto caminham abraçados”. Em Ladrão de Casaca (1955), a sedutora personagem de Grace Kelly, depois de se aventurar com o amante, vivido por Cary Grant, inicia uma seqüência de beijos acompanhada por fogos de artifício, um “orgasmo” compensatório. Em Intriga Internacional (1959), os recém-casados se beijam ardentemente dentro de um vagão até que o trem penetra rapidamente dentro de um túnel e o filme acaba. Na imaginação do espectador, o beijo prossegue...e já se sabe a próxima cena. Como não podia mostrar beijo gay, Hitchcock sublimou a relação homoerótica entre os protagonistas de Festim Diabólico (1948) por meio de diálogos íntimos e pelo assassinato do amigo causado por ciúmes.

A repressão do beijo foi bem representada pelo diretor Giuseppe Tornatore no filme Cinema paradiso (1989). Na trama, o personagem do padre Adelfio é como os olhos da censura: ele assiste previamente os filmes que aportam na cidade, obrigando o projecionista a cortar todas as cenas de beijo. Como bom cinéfilo, o projecionista arquiva as cenas mutiladas e, somente no final, é que descobrimos a maratona de beijos proibidos.

Pela sublimação do sexo, este cinema clássico evocava uma aura de glamour. Os personagens expressavam seus desejos eróticos por meio de atos comuns, mas simbólicos, como uma mão trêmula, um lábio semi aberto, uma cama de casal revirada, um roçar de pernas, um beijo ao pé do ouvido. A mulher era divinizada no star system. “Não se podia mostrar uma estrela desgrenhada, sem maquiagem, mal iluminada. O desejo despertado pela diva era consumado apenas no beijo na boca, que sublimava a penetração sexual, de modo que até esse ato sujo de secreções e viscosidades era limpo e asseado” – comenta Nazario.

O BEIJO UNDERGROUND

Apesar de a repressão ter estimulado a criação de um universo que, por sua natureza anti-realista, favorecia a fantasia erótica, a trajetória do beijo no cinema underground (anos 50 a 70) foi diferente, mais explícita e menos reprimida. As tramas exaltavam o desejo, livre dos padrões sociais e das tradições cinematográficas hegemônicas. No Brasil, mesmo com a navalha da Ditadura, beijos erotizados rolavam soltos nas pornochanchadas e também no cinema marginal que, durante os anos 60 e 70, produziu dezenas de filmes na chamada Boca do Lixo.

No underground, o beijo passou a identificar a realização do desejo através do prazer em si mesmo. Cineastas como Cocteau, Jean Genet, Markopoulos, Kenneth Anger, Jack Smith e Paul Morrissey projetaram imagens sensoriais de beijos, coitos e excitações sob a perspectiva do êxtase e da liberdade sexual, cuja estilística influenciaria toda uma geração, de Pasolini à Derek Jarman, de John Waters à Almodóvar, de Gregg Araki à Bruce LaBruce. Quem levou aos limites a transgressão estética do desejo foi Andy Warhol. Mergulhado na contracultura dos anos 60, o artista capturou sua época: da mass media ao underground, do cultmovie ao trash, do glamour hollywoodiano à pornografia, da televisão à intelectualidade, das fofocas às vanguardas. Warhol registrava e erotizava tudo ao seu redor: entre 1963 e 1972, registrou em 16mm centenas de metros de filmes insólitos, subversivos e experimentais que capturavam a performance do corpo no cotidiano, que teatralizavam a vida de modo camp. Seus filmes tinham roteiros simplórios, abordavam a intimidade das pessoas: o ato de acordar, conversar, brigar, excitar-se, transar. Em um deles, Kiss (1968), Warhol registrou 55 minutos com diversos casais se beijando durante 3 minutos e meio cada um deles, criando uma iconoclastia do beijo, além de uma paródia ao beijo hollywoodiano durante a censura.

No cinema marginal, cineastas como Rogério Sganzerla, Julio Bressane, Ozualdo Candeias, entre outros, teceram fantasias eróticas em filmes politicamente outsiders, trágicos. Sem muito glamour, este cinema deflagrava a realidade política de modo anti-romântico. A musa do cinema marginal, Helena Ignez, declarou que praticamente não havia beijo apaixonado. Em sua personagem Angela Carne Osso, em A Mulher de Todos (1969), de Sganzerla, havia forte atração sexual, mas sempre sem beijos. “Dentadas e queimaduras de charutos, ponta pé, traição, forte sexualidade. O carinho do beijo não existia nos personagens”. Em Bressane, particularmente Cara a Cara (1967), “a sexualidade era angustiada e mortal, também sem beijos. A morte do amor, isto é, do meu personagem”. E mesmo a femme fatale Janete Jane, de O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Sganzerla, é morta, e sem beijos.

A NOVELA DO BEIJO GAY

Embora o underground tenha dado maior vazão ao beijo gay/lésbico, o cinema mainstream o abordou por meio de insinuações veladas e representações melancólicas sem finais felizes, mascarando-o em sua complexidade afetiva e sexual, em filmes pioneiros como Diferente dos outros (1919), de Richard Oswald; Mikael (1924), de Carl Dreyer; Sexo na cadeia (1928), de Dieterle; Lot in Sodom (1933), de James Watson e Melville Webber; e Mulheres de uniforme (1931), de Leontine Sagan e Carl Froelich.

No cinema europeu, de Pasolini a Visconti, de Fellini a Bergman, os personagens gays tinham fins tristes, solitários. Após os anos setenta é que ocorre uma abertura mundial: Rosa von Praunheim filma Não é o homossexual que é perverso, mas a sociedade em que ele vive (1971) repleto de beijos entre barbudos; Arthur Hiller mostra em close um beijo entre homens casados, mas infelizes com as esposas, em Making Love (1982); Fassbinder estiliza um romance sadomasoquista em Querelle (1982); a feminista Barbara Hammer registra beijos e afetos entre mulheres mais velhas em Nitrate Kisses (1992); David Lynch projeta um beijo paranóico entre as personagens de Cidade dos Sonhos (2001); cineastas indies, como Lukas Moodysson, filmam descobertas sexuais iniciadas com o rito do primeiro beijo; o argentino Plata Quemada (2000) revela um beijo gay à beira da morte; Almodóvar problematiza a identidade em A lei do desejo (1987), a começar pelo beijo, quando, já na cena inicial, um rapaz excitado beija a si mesmo no espelho; Milk (2008), de Gus Van Sant, torna política a visibilidade do beijo; e o oscarizado Brokeback Mountain (2005), de Ang Lee, leva ao grande público o explosivo beijo dos cowboys apaixonados.

No cinema nacional, a partir dos anos noventa, o personagem homossexual livrou-se um pouco do estigma estereotipado das pornochanchadas, comumente associado à piada, à delinqüência e ao medíocre, conforme notou Antonio Moreno, autor do livro A personagem homossexual no cinema brasileiro (2001) e professor de cinema da UFF-RJ. “A questão (da abordagem gay) passa muito pelo contexto da época em que os filmes foram realizados. Você vai verificar muita recusa de beijos na tela ou de representações mais no sentido de chocar violentamente a platéia, principalmente nos filmes com cenas de lesbianismo (Noite Vazia, 1964, Walter Hugo Khouri). O que distancia muito do sentido do beijo como verdadeira manifestação de afeto explicitado numa cena fílmica, na tela do cinema. Além do beijo relâmpago no final de O Menino e o Vento (1966), de Carlos Hugo Christensen, só lembro de um beijo realmente escrachado, sem concessões entre Tunico Pereira e Anselmo Vasconcelos, atores realmente ecléticos, maravilhosos, em República dos Assassinos (1979), de Miguel Faria Jr.”

Desde então, diversos beijos apareceram em Amores possíveis (2001), de Sandra Werneck; Madame satã (2002), de Karim Aïnouz; A Concepção (2005), de José Eduardo Belmonte; Onde Andará Dulce Veiga? (2007), de Guilherme de Almeida Prado; A festa da menina morta (2008), de Matheus Nachtergaele; Do começo ao fim (2009), de José Aluízio Abrantes; Como Esquecer (2010), de Malu de Martino; Os 3 (2011), de Nando Olival; sem contar as produções independentes lançadas em festivais LGBT.

FINAL SEM BEIJO

Se, no primeiro cinema, um tímido beijo era tido como pornográfico, hoje ele é mero assunto “sessão da tarde”, não provoca frisson. O cinema-explícito contemporâneo estiliza friamente o beijo e o sexo em filmes de Lars von Trier, Michael Haneke, Gaspar Noé, Michael Winterbottom, Bruno Dumont, Virginie Despentes, Larry Clark, Patrice Chéreau, Catherine Breillat, John Cameron Mitchell, entre outros.

O beijo cinematográfico perdeu sua aura romântica para a estilização realista do sexo, tanto que na obra dos cineastas acima o sexo aparece explícito e, ainda que com propósitos dramáticos, carece de afeto, beijos ou romantismo. Geralmente o carinho do beijo, no cinema indie atual, quando aparece, tem sua representação associada à violência (estupros, crimes), à escatologia e à agressividade. Para o cineasta underground canadense Bruce LaBruce, “a urgência sexual foi transformada num apetite voraz por violência e carnificina. O que a cultura fez para substituir a vontade de sexo explícito foi difundir largamente imagens de violência explícita. Marcuse chamou isso de ‘sublimação repressiva’. Neste sentido, a violência, e por extensão a morte, é a nova pornografia”. E, convenhamos, quase não há beijos na pornografia.

Tal como a sociedade contemporânea, parece que são mais marcantes as cenas violentas de nosso cinema do que as raras cenas românticas. Ou você se recorda de um beijo inesquecível no cinema atual? Em alguns países islâmicos e orientais, o beijo ainda é tido como obsceno, tabu. Na Índia, o recente filme Dunno Y... Na Jaane Kyun (2010), de Sanjay Sharma, em que os atores Kapil Sharma e Yuvraaj têm uma relação afetiva, sofreu protesto e censura, levando críticos, políticos e religiosos a clamarem por uma “censura bollywoodiana” às cenas de sexo. No caso, consideraram como “sexo” a cena de beijo entre os personagens. O beijo foi tão polêmico que o ator Yuvraj foi deserdado pela família. Até mesmo o Oscar deste ano lapidou, por segundos antecipados, a transmissão do selinho entre Javier Bardem e Josh Brolin durante a apresentação. Algumas emissoras também censuraram o beijo gay em um dos episódios de Os Simpsons. O beijo no cenário contemporâneo é assim esquizofrênico, ora estimulado ora reprimido, ora histérico ora vazio de sentido, ora associado ao amor e à intimidade ora gratuito e público, distribuído por pessoas com placas nas ruas. Tudo indica que os beijos clássicos eram mais cinematográficos.

* Versão integral do artigo originalmente publicado na Revista da Livraria Cultura (matéria de capa), em Dezembro de 2011.

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