O ano é 1938 e o filme é “Everybody sing”, na cena os donos de uma
companhia teatral analisam a performance de uma jovem que entra maquiada
no estilo Blackface, que canta uma canção sulista americana de cunho
racista enquanto seus gestos caricatos evocam traços quase simiescos e a
presença de piolhos. A atriz era Judy Garland, a mesma do Mágico de Oz.
Analisemos outra cena, o ano é 1959, na cena o ator Charlton Heston é
acolhido por um domador de cavalos chamado Sheikh Ilderim, vivido pelo
ator Hugh Griffith, que até onde se sabe, não possui ascendência árabe. O
ator, portanto, tem seu rosto tingido para fazer o papel. Na cena há um
momento em que os convidados comem e que o Sheikh pergunta a Ben-hur se
a comida era do seu agrado, enquanto arrotava, em uma repetição
estereotipada da “boa educação árabe”. O filme levou 11 estatuetas do
Oscar, uma foi para Hugh Griffith. Em ambas as cenas se usou a mesma
técnica, o uso de artistas brancos para passar imagens preconceituosas
sobre outros grupos étnicos, mas por que apenas o da Judy parece nos
enojar, embora justamente?
Segundo o autor Jack Shaheen, os
árabes são o grupo de pessoas mais caluniado na filmografia de
Hollywood, basicamente sendo retratados como subumanos. Segundo ele,
essas imagens estereotipadas dos árabes e dos muçulmanos estão no
inconsciente da população por mais de um século. Dos mais de 1000 filmes
que ele analisou, 936 carregavam teor negativo. Essa calúnia é
perpetrada em vários níveis, nas representações visuais, nas
representações narrativas, assim como os desdobramentos inerentes à
mesma, e, acima de tudo, nas histórias que Hollywood conta a respeito
dos árabes. A autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie tem uma frase
interessante a respeito do papel das histórias:
“É impossível
falar sobre a história única sem falar sobre poder. Existe uma palavra
em igbo na qual sempre penso quando considero as estruturas de poder no
mundo: nkali. É um substantivo que, em tradução livre, quer dizer “ser
maior do que outro”. Assim como o mundo econômico e político, as
histórias também são definidas pelo princípio do nkali: como elas são
contadas, quem as conta, quando são contadas e quantas são contadas
depende muito de poder. O poder é a habilidade não apenas de contar a
história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história
definitiva. O poeta palestino Mourid Barghouti escreveu que, se você
quiser espoliar um povo, a maneira mais simples é contar a história dele
e começar com em ‘segundo lugar’.”
Nesse sentido, o lugar que os
árabes foram ocupando nas narrativas ocidentais não pode ser entendido
sem um olhar atento às idiossincrasias históricas que o compuseram.
Shaheen, portanto, usa como primeiro ponto de partida a concepção
orientalista do mundo árabe. Mas o que seria esse árabe? A primeira
problemática é que se pensa árabe e muçulmano como a mesma coisa. O que
não é verdade. Tampouco se pode unificar esses árabes dentro de um
padrão linguístico, haja vista sua extensão territorial, desde o norte
da África até o Irã, passando pelo árabe, persa, aramaico, hebraico,
berbere etc. Então o que seria esse árabe? Shaheen entra, então, no
conceito de Arabland, uma terra mística, exótica, cercada pelo deserto
com seus escorpiões e cobras venenosas, cujos homens e mulheres jazem em
um eterno conto de “As Mil e Uma Noites” mal traduzido.
De
acordo com Edward Said, os estereótipos árabes no cinema hollywoodiano
sempre foram semelhantes: o nariz bem adunco, o olhar malévolo e de
soslaio sobre o bigode cheio nos rostos, associados com a libidinagem ou
com uma desonestidade sanguinária. O homem árabe ou muçulmano sempre
aparece como um degenerado excessivamente sexuado, capaz de intrigas
tortuosas, sádicas, traiçoeiras e baixas. Alguns dos papeis tradicionais
dos árabes no cinema são: traficantes de escravos, cameleiros,
cambistas, patifes, vilões, terroristas, representantes de povos do
deserto, bilionários do petróleo e sheikhs gananciosos, muitas vezes
vestindo túnicas e turbantes, sempre armados, prontos para agir com
violência. Já as mulheres são retratadas pelo cinema apenas de duas
formas: sexualizadas ou oprimidas. Quando a mulher não aparece como uma
exótica odalisca, uma escrava em um harém, conhecida por sua
sensualidade, com roupas decotadas e a barriga de fora ou como uma
dançarina do ventre de olhos delineados de preto e sexualmente
disponível, ela aparece como uma mulher oprimida pela família, submissa,
nas sombras de outros personagens, obrigada a esconder o corpo e os
cabelos com uma burca, não tendo a chance de decidir sobre o seu
destino.
A presença desses estereótipos não é invenção de
Hollywood, ela já está presente, por exemplo, no Dom Quixote de
Cervantes, no Zadig de Voltaire, nos romances de cavalaria medievais. O
estereótipo, segundo os pesquisadores Sálua Omais e Manoel Antônio dos
Santos da USP: “os estereótipos são formas das quais o indivíduo se
utiliza para processar informações complexas de maneira mais
simplificada, mas que nem sempre refletem a realidade. A partir disso, o
aparato cognitivo processa e seleciona os elementos mais significativos
e distintos presentes nas informações abstraídas e, como informações
negativas são geralmente mais marcantes, será por meio delas que estes
significados provavelmente serão construídos, fixados e estabilizados na
mente”. O problema, no entanto, é que todo estereótipo é incompleto.
Mas há outra coisa também a se levar em conta. Para Pierre Bourdieu, os
espaços de significação também são espaços de disputas de poder. O mesmo
argumento aparece em Stuart Hall quando diz que a representação não é
“espelho” passivo da realidade, mas sim um processo ativo de produção de
sentido: imagens fixas (como a do árabe barbudo) cristalizam
identidades “outros”. Posto isso, todo projeto cultural que cristalize
concepções racistas parte de um projeto político. E se o cinema é uma
arte, ele também é uma indústria bilionária que tem suas finalidades
propagandísticas.
Esse é o principal argumento de Shaheen.
“[árabes] assassinos violentos, estupradores desprezíveis, fanáticos
religiosos, idiotas ricos em petróleo, e agressores de mulheres. [...] A
imagem violenta dos extremistas não apenas reforça e intensifica um
estereótipo que já é proeminente, mas também serve tanto como fonte e
justificativa para continuar batendo nos árabes. Em particular, os
noticiários são utilizados como desculpa por alguns produtores e
diretores para negar qualquer envolvimento com a estereotipação
voluntária. ‘Nós não estamos estereotipando’, eles argumentam. ‘Apenas
olhe para a sua televisão. Aqueles são árabes reais.’”
Mas, como
diria Augusto Boal, “A imagem do real é real enquanto imagem”. Se o
cenário do Orientalismo serviu a uma narrativa do Imperialismo ocidental
do final do século XIX, que reduziu o legado dos povos colonizados a
bárbaros incultos, seguidores de uma religião mística, a presente
representação foi tomando sua atual forma a partir dos conflitos da
década 1950 principalmente a partir dos seguintes fatores: O conflito
israelo-palestino, a Crise do petróleo de 1974 e a Revolução Iraniana
(que não são árabes, mas persas) de 1979. A partir desses fatores a
imagem dos árabes, já pré-identificados como muçulmanos, embora exista
uma população de 15 milhões de cristãos na região, passam a ser vistos
não apenas como bandoleiros, ou gatunos em sua própria região, mas uma
ameaça global. O caminho mental segue o seguinte esquema narrativo:
árabes, logo muçulmanos, logo terroristas, logo odeiam a América, que é o
contrário de tudo isso. De acordo com Shaheen, a imagem popular dos
judeus na propaganda nazista se assemelha à imagem popular dos árabes em
alguns dos mais queridos filmes de Hollywood, a única diferença é que o
árabe geralmente usa uma túnica e um turbante”. Filmes como Comando
Delta (1986), Momento Crítico (1996), Nova York sitiada (1998) - nesse
filme o ritual da ablução é relatado como uma preparação a um ataque
terrorista - recorrem aos mesmos recursos já citados, sotaque forte,
ódio gratuito, barba, além das técnicas de luz e sombra para salientar a
soberba ou mesmo a agressividade. Mesmo em Aladdin, obra tida como
clássica na Disney, o personagem não deixa de ser o gatuno e malandro
que tenta se dar bem, enquanto Jasmine é mostrada curvilínea e
sensualizada.
Com o 11 de setembro e a Guerra ao terror, as
perseguições e a estereotipia ganharam novos contornos. Em Munique
(2005) Steven Spielberg dramatiza a resposta secreta do serviço de
inteligência israelense aos atentados contra atletas israelenses nos
Jogos de Munique de 1972. O enredo acompanha agentes do Mossad – todas
figuras heroicas na ótica do filme – em missões de vingança contra
suspeitos palestinos. O filme reforça a desumanização do outro pelo
arquétipo e pela necessidade de eliminação sumária. Padrão que se
repete, os palestinos sempre são retratados como criminosos que estão
ávidos por destruir o Pequeno Israel. Não há por parte dos estúdios a
necessidade questionar a ocupação israelense, a tomada de terras e o
apartheid a que essas populações são submetidas. Um exemplo claro disso
ocorreu no presente ano de 2025, quando o documentário “No other land”
que mostra a truculência da ocupação israelense em territórios
palestinos, pouquíssimas salas de cinema dos EUA quiseram exibi-lo. E
quando um de seus diretores, Hamdan Ballal foi agredido por colonos
judeus e sequestrado pelas Forças de Defesa de Israel, a academia
recusou-se a emitir um comunicado de repúdio. A atitude gerou críticas
de diversos artistas, o que fez com que a mesma organização emitisse uma
nota em tom ameno, quase conciliatório.
Embora tenhamos
indicativos de filmes que humanizam a questão do Oriente médio, como
Babel (2005), de Iñarratu, a questão estereotípica ainda é um desafio. O
racismo recreativo nos filmes de Hollywood legitima representações
depreciativas de pessoas árabes e muçulmanas, o que são formas de micro
agressões, mecanismos discriminatórios que expressam condescendência ou
desprezo por esse grupo, operando também como forma de defesa da pureza
moral dos estadunidenses brancos - e dos grupos sionistas. Voltemos ao
ponto inicial, nenhuma forma de racismo é aceitável, se a Shoah - o
Holocausto nazista - nos enoja enquanto humanos, se a escravidão
atlântica é uma vergonha que temos que encarar para que nunca se repita,
se o massacre de Nanquim pelas tropas japonesas revira o estômago,
assim como o 11 de setembro, genocídio armênio, POR QUE GAZA NÃO? A
resposta infelizmente está diante dos nossos olhos todos os dias, fomos
ensinados a odiar, nos divertimos em odiar, e quando as pessoas morrem,
mesmo crianças, não ligamos. Não foi um palestino que há 2000 anos
comparou o ódio ao assassinato? Os judeus o chamam de Yeshua, os árabes
de Isa, mas você pode chamá-lo de Jesus, se quiser.
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